Uma boa inovação das Directivas de 2014 foi (na sequência de solicitações de múltiplas entidades adjudicantes de diversos Estados-membros) a atribuição expressa de relevância ao incumprimento de contratos anteriores (a chamada bad past performance). Isto porque, se na contratação privada a solução é simples (em caso de incumprimento, nunca mais se volta a contratar com o prevaricador), na contratação pública a questão não se coloca da mesma forma, já que as entidades adjudicantes não podiam, sem mais, impedir a participação de um concorrente reiteradamente incumpridor em novos procedimentos pré-contratuais, desse modo sujeitando-se a ficar “reféns” desse operador económico relapso.

Em escrito anterior sobre o tema (“Da exclusão por incumprimento de contrato(s) anterior(es) à luz das novas Directivas em matéria de contratação pública”, in AA.VV., Liber Amicorum Manuel Simas Santos, 2016, páginas 893 a 919, em co-autoria com Juliana Braz Mimoso), tive já oportunidade de referir que, embora não fosse líquida qual a melhor forma de transpor, para o ordenamento nacional, esta figura das Directivas – se como impedimento do operador económico ou causa de exclusão das propostas, sendo que, se calhar, em teoria, o mais adequado seria “apenas” o aumento do valor da caução, correspondente ao agravamento do risco de incumprimento –, provavelmente a forma mais prática e adequada seria a de consagrar o incumprimento contratual anterior como impedimento.

Foi isso, aliás, que veio a ser consagrado no novo regime da contratação pública dos Açores (aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 27/2015/A).

Por esse motivo, foi com alguma surpresa que constatei que o Anteprojecto acolheu esta figura em sede de contra-ordenação.

Reiterando a minha posição de princípio, favorável à “importação” desta figura (note-se que é uma opção do legislador nacional, já que a sua transposição não era obrigatória, mas facultativa), não posso deixar de manifestar algumas reservas sobre a forma como esta figura foi recebida no Anteprojecto.

Por comodidade, passo a enunciar as minhas dúvidas por tópicos:

(i) Antes de mais, confesso a minha estranheza em ver um ilícito contratual transformado em ilícito contra-ordenacional [cf. artigo 456.º/1, alíneas f) e g)];

(ii) Depois, a privação de participação em procedimentos pré-contratuais, que começa por surgir como sanção “acessória” [cf. artigo 55.º/1, alínea m)], é afinal a única sanção que pode ser aplicada nos casos de incumprimento previstos nas alíneas f) e g) do artigo 456.º/1 (como resulta do n.º 3 deste mesmo preceito legal). Ou seja, de “acessória”, esta sanção passa a principal ou, até, única;

(iii) Do mesmo modo, se o que determina a aplicação da sanção é a aplicação de multas contratuais até ao montante máximo legalmente permitido ou a existência de resoluções sancionatórias, não se vê muito bem quais os critérios que podem ser utilizados na fixação da duração temporal da sanção: como é que se sabe se “a gravidade da infração” e “a culpa do agente” justificam a aplicação da sanção e como se aferem estes requisitos (gravidade e culpa), se o que fundamenta a sanção é objectivamente demonstrável?

Mesmo sem defender a inconstitucionalidade dos dois números do artigo 460.º (como já foi equacionado na discussão pública), considero que deveria a norma sancionatória ser mais densificada;

(iv) Também não sei se a atribuição da competência para a aplicação desta sanção ao Presidente do Conselho Directivo do IMPIC (cf. artigo 461.º/2) será a melhor solução;

(v) Por outro lado, talvez isto não seja uma sobrecarga excessiva daquele órgão, já que os exigentes requisitos previstos na lei (maxime, por força da restrição dos factos que fundamentam a punição aos dois últimos anos) levarão, como já foi também apontado (cf. João Amaral e Almeida e Pedro Fernández Sánchez, Comentários, página 80), a que esta sanção nunca seja aplicada;

(vi) Independentemente de tudo isso, também não deixa de causar estranheza que uma sanção aplicada pelo Presidente do Conselho Directivo do IMPIC (e que poderá até consolidar-se no ordenamento jurídico, caso não seja tempestivamente impugnada) possa, por força das exigências comunitárias do self-cleaning, ser afastada casuisticamente por cada entidade adjudicante (cf. artigo 55.º-A/3).

No fundo, parece que o legislador do Anteprojecto terá talvez procurado consagrar um sistema de “lista negra” de incumpridores, como foi consagrado em Angola (cf. artigo 56.º da Lei dos Contratos Públicos, aprovada pela Lei n.º 9/16, de 16 de Junho). Mas, se era esse o objectivo, teria sido preferível dizê-lo expressamente, ao invés de criar esta “contra-ordenação” por “ilícito contratual” e que pode ser afastada por qualquer entidade adjudicante.

Além de todas estas dúvidas quanto à bondade e praticabilidade da solução adoptada, acho ainda que ela é demasiado restritiva, por se circunscrever aos casos em que chegou a haver resolução sancionatória (o que é raro entre nós) ou em que as multas aplicadas atingiram o montante máximo legalmente permitido: além de concordar que a referência ao período temporal dos dois anos antecedentes é muito exigente, também considero que a bad past performance poderia ser aferida de modo mais lato (por exemplo, permitindo à entidade adjudicante ter em conta a mera aplicação de penalidades contratuais num número mais alargado de contratos, mesmo que em nenhum deles o montante das penalidades aplicadas tivesse chegado aos 20% ou 30% do preço contratual).

MRC