1. Uma das inovações previstas no Anteprojecto de revisão do CCP – porventura, a novidade mais relevante no regime da execução dos contratos administrativos, contido na sua Parte III – consiste na criação da figura do gestor do contrato.

Como se lê no preâmbulo, este gestor tem “a função de acompanhar permanentemente a execução do contrato, o que se afigura importante como ferramenta de promoção de um desempenho de qualidade de todos os que colaboram no exercício de tarefas de relevância pública”.

Assim, dispõe o novo artigo 290.º-A/1 que “[o] contraente público deve designar um gestor do contrato, com a função de acompanhar permanentemente a execução deste”, devendo a sua identidade constar do clausulado do contrato, constituindo uma das suas menções obrigatórias [cf. artigo 96.º/1, alínea j)].

Acrescenta o n.º 2 que, quando se trate de “contratos com especiais características de complexidade técnica ou financeira ou de duração superior a três anos”, e sem prejuízo das funções que sejam definidas por cada contraente público, o gestor deve elaborar indicadores de execução quantitativos e qualitativos adequados a cada tipo de contrato, que permitam, entre outros aspetos, medir os níveis de desempenho do cocontratante, a execução financeira, técnica e material do contrato.

Caso o gestor detecte desvios, defeitos ou outras anomalias na execução do contrato, deve comunicá-los de imediato ao órgão competente, propondo em relatório fundamentado as medidas correctivas que, em cada caso, se revelem adequadas (n.º 3). O contraente público pode delegar no próprio gestor do contrato poderes para a adopção das medidas correctivas por si propostas, “exceto em matéria de modificação e cessação do contrato” (n.º 4).

2. Parece-me, sem dúvida, ser de aplaudir esta inovação, que – em paralelo, aliás, com o que se vai verificando noutros ramos do Direito Público, bastando olhar para o gestor de procedimento, previsto no RJUE (artigo 8.º/3) e, agora, para o responsável pela direcção do procedimento, consagrado também no CPA (artigo 55.º) – tem as vantagens da segurança e da transparência, dando um “rosto” à Administração Pública e elegendo um interlocutor (tendencialmente único) que serve de ponto de contacto entre os particulares e a Administração.

Além disso, ao monitorizar o cumprimento do contrato, este interlocutor pode agir (em vez de apenas reagir) proactivamente logo que se verifique alguma situação que deva ser corrigida, evitando que um eventual cumprimento se agrave ou se arraste no tempo.

Pelo bom ou mau desempenho das suas funções deverá ele prestar contas perante o contraente público, que o nomeou.

3. De todo o modo, como também já foi notado, o Anteprojecto é algo parco na regulamentação desta nova figura, nomeadamente, no que diz respeito à escolha deste gestor, na medida em que o legislador criou “um “responsável” pelo procedimento de execução, mas não definindo se este é o titular ou membro do órgão ou um dirigente ou um trabalhador – estará afastada a possibilidade de contratação externa destes serviços?” (cf. Luís Alves, “Brevíssimas considerações sobre o Anteprojeto de revisão do Código dos Contratos Públicos”, in JusJornal, n.º 2460, 12 de Outubro de 2016).

Um ponto que me parece dever ter-se por assente é o de que o gestor, tenha ou não vínculo à entidade adjudicante ou à Administração Pública em geral, deve estar sujeito ao regime geral do CPA sobre impedimentos, incompatibilidades e suspeições, de modo a garantir que a sua actuação não é ilegalmente condicionada por factores de amizade ou inimizade face ao adjudicatário / co-contratante. Como já tive oportunidade de escrever (em artigo com Juliana Braz Mimoso) – a propósito da nomeação de fiscais de obra, mas em termos que são transponíveis, mutatis mutandis, para a nomeação do gestor do contrato –, é fundamental assegurar que quem exerce estas funções não é “uma entidade rival do adjudicatário no mercado (sobretudo, se aquela também tiver sido concorrente no procedimento que antecedeu a celebração do contrato (…))” nem “integra o júri de um outro procedimento em que este operador económico se apresentou como concorrente”, na medida em que “situações como as aqui adiantadas prestam-se a óbvios conflitos de interesse” (cf. “Da exclusão com base em incumprimento de contrato(s) anterior(es)”, in AA.VV., Liber Amicorum Manuel Simas Santos, Rei dos Livros, 2016, página 919, nota 86).

Julgo, aliás, por este motivo, que a escolha do gestor do contrato deve ser passível de reacção por parte do adjudicatário / co-contratante privado (nomeadamente com base em algum ou alguns destes fundamentos), seja através da reclamação contra a minuta do contrato (ainda que esta situação não se encontre elencada no artigo 102.º/1 do CCP), seja através de impugnação administrativa propriamente dita (nos termos gerais dos artigos 267.º e seguintes do CCP).

4. Paralelamente, se o gestor do contrato for uma pessoa externa à entidade adjudicante, também pode questionar-se qual o regime de contratação a que esta aquisição de serviços fica sujeita: excluindo a hipótese de cooperação interadministrativa (imagine-se que alguém requisita um técnico do LNEC para o efeito, por hipótese), fica a dúvida de saber se o gestor pode ser contratado por ajuste directo, nomeadamente atendendo à urgência na sua contratação (recorde-se que o gestor deve ser identificado logo no clausulado do contrato)? Nos casos em que o valor associado à prestação destes serviços exceda o limiar do ajuste directo em função do valor, esta será uma questão que eventualmente poderá colocar-se.

5. Por último, relativamente à possibilidade de delegação de poderes prevista no artigo 290.º-A/4, e sem prejuízo de a mesma ser de louvar (na medida em que permite ao gestor actuar desde logo sobre o incumprimento detectado), não seria pior o Anteprojecto prever expressamente, desde logo, a possibilidade de impugnação administrativa, para o contraente público, das medidas adoptadas pelo gestor do contrato no exercício de poderes delegados. É que, como se sabe, o novo CPA, numa previsão algo enigmática (para dizer o mínimo), condicionou a admissibilidade de recurso dos actos do delegado para o delegante à existência de “expressa disposição legal” (artigo 199.º/2). Ora, nesta matéria de cumprimento ou incumprimento do contrato, faria todo o sentido abrir a possibilidade de o co-contratante privado se dirigir directamente ao contraente público (no fundo, a sua contraparte na relação contratual), para discutir a legalidade ou conveniência dos actos praticados pelo gestor em seu nome, evitando ter de ir logo para Tribunal desencadear um litígio que, porventura, poderá ainda ser dirimido de forma consensual entre as partes.

6. Possibilidade, esta – já agora… –, tanto mais importante quando se sabe que (i) o CCP (rectius, o Decreto-Lei n.º 18/2008, que o aprovou) aboliu – a meu ver, sem explicação inteiramente convincente – a tentativa de conciliação anteriormente prevista no RJEOP de 1999 e que (ii) o Anteprojecto de revisão apenas prevê o recurso à arbitragem em moldes restritivos (remeto para os posts já publicados sobre a matéria por vários autores neste blog).

Este enquadramento não é o mais favorável à resolução amigável de dissensos eclodidos na execução do contrato, podendo mesmo ser agravado pela figura da past performance (sobre a qual já falei mais detalhadamente noutro post), se e na medida em que os contraentes públicos possam ter a tentação de fazer “chantagem” sobre os co-contratantes privados, sabendo que as consequências do incumprimento de um contrato – sancionado com a aplicação de multas e/ou a resolução – não se cingem à própria relação bilateral propriamente dita, estendendo-se, bem pelo contrário, a procedimentos pré-contratuais futuros em que o co-contratante privado pretenda vir a apresentar proposta. O que, na minha óptica, reforça o que acima referi no ponto 3, a propósito das imprescindíveis garantias de imparcialidade do gestor do contrato.