1. Em artigo de opinião hoje publicado no Observador, o Professor Pedro Costa Gonçalves criticou as medidas especiais de contratação pública em matéria de projectos co-financiados por fundos europeus, de habitação e descentralização, de tecnologias de informação e conhecimento, de execução do Programa de Estabilização Económica e Social e de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais que constam da Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª. Fundamentalmente, as críticas prendem-se com a possibilidade de adopção generalizada de procedimentos de consulta prévia para a celebração de contratos de valor inferior aos limiares europeus e com a dispensa dos limites à contratação reiterada do(s) mesmo(s) operador(es) económico(s) para efeitos de determinação das entidades que podem ser convidadas a apresentar proposta nessas consultas prévias (o artigo está disponível em https://observador.pt/opiniao/eliminacao-da-corrupcao-nos-negocios-publicos-por-decreto/).
2. Mais do que entrar aqui na análise das críticas feitas a este regime – o qual, de resto, segue o padrão normalmente seguido pelo legislador nacional em matéria de “contratação pública de emergência” –, parece-me interessante fazer a ligação com a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024, recentemente divulgada pelo Governo.
Na verdade, a páginas 32 deste documento, afirma-se textualmente o seguinte:
“A contratação pública é uma das áreas em que se justificam alterações ao quadro legal, no sentido de tornar os procedimentos mais transparentes e assim reduzir os contextos facilitadores da corrupção.
Esse resultado pode ser alcançado, nomeadamente, através de uma mais ampla publicitação do procedimento contratual; do aperfeiçoamento do regime de impedimentos; de uma mais rigorosa densificação do princípio da imparcialidade, estendendo o conflito de interesses à fase da preparação do procedimento de formação de contrato público; de um melhor recorte das entidades relacionadas para efeitos de escolha de convidados a participação no procedimento.
Impõe-se aperfeiçoar o modelo de acompanhamento da gestão dos fundos comunitários, reforçando a transparência através da publicitação dos processos e implementando mecanismos que permitam não só antecipar situações de fraude como também assegurar a prestação de contas”.
3. Pela minha parte, confesso não estar certo de ter percebido exactamente o que se quer dizer com “uma mais ampla publicitação do procedimento contratual”: não me parece que queira dizer-se que, nos procedimentos que já são objecto de publicitação, a mesma deve ser alargada (v.g., o anúncio, além de publicado no DRE e no JOUE, quando for o caso, passa a ser divulgado noutros locais – quais?).
Não sendo esta a leitura correcta (como me parece não ser), à partida, duas outras hipóteses se afiguram possíveis:
(I) Uma, seria a de que a “mais ampla publicitação do procedimento contratual” significa que o legislador quer reduzir o limite do valor do contrato acima do qual passa a ser obrigatória a adopção de um procedimento concursal.
Esta opção iria ao encontro das críticas de João Amaral e Almeida/Pedro Fernández Sánchez ao anteprojecto de revisão do CCP em 2016, mas não me parece que seja isto que está na mente do legislador, desde logo por contrariar o desígnio previsto na Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª, tanto quanto às medidas especiais de contratação pública (em que, como se viu, se estabelece a consulta prévia como procedimento-padrão para os contratos abaixo dos limiares), como quanto à revisão do CCP que se anuncia (em que não se prevêem alterações nos limiares do ajuste directo ou da consulta prévia).
(II) Outra leitura consistiria em entender que a referência em causa se refere a uma mais ampla publicitação dos procedimentos não concorrenciais (ou seja, o ajuste directo e a consulta prévia).
Ora, a publicitação da celebração dos contratos já se encontra prevista no artigo 127.º do CCP, num regime que a Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª, no essencial, se propõe manter.
É certo que, quanto às medidas especiais de contratação pública, a Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª prevê que as consultas prévias sejam tramitadas na plataforma electrónica da entidade adjudicante: é um avanço, mas parece “curto”, sobretudo se o mercado não tiver forma de saber, em tempo útil, que foi promovido um procedimento de consulta prévia e que entidades foram convidadas.
Além de que, tendo em conta o âmbito (material e temporalmente) circunscrito das medidas especiais de contratação pública, não parece plausível que fosse este regime que o Governo tinha em mente ao aludir a “uma mais ampla publicitação do procedimento contratual” como uma forma de combater a corrupção.
4. Em suma: a menos que a Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª ainda vá ser alterada ou que o Governo esteja a preparar outro diploma sobre a matéria, não é claro de que modo se tenciona promover “uma mais ampla publicitação do procedimento contratual” – publicitação essa que, seguramente, não parece ser uma preocupação tida em conta quanto aos procedimentos adoptados à luz das medidas especiais de contratação pública.
Continua, portanto, por saber de que modo concreto tenciona o legislador implementar a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024 no que respeita à matéria da contratação pública (além da previsão de que, nos contratos sujeitos a visto prévio do Tribunal de Contas, o adjudicatário que não seja uma micro-empresa ou uma PME apresente, como documento de habilitação, um plano de prevenção de corrupção e de infrações conexas: cf. o novo n.º 9 que a Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª se propõe aditar ao artigo 81.º do CCP).
5. Isto é tanto mais relevante quando se sabe que cerca de 90% dos procedimentos pré-contratuais em Portugal continuam a ser procedimentos por convite e que, embora a criação da “nova” consulta prévia, em 2017, tenha conduzido a que boa parte desses procedimentos tenha agora pelo menos 3 entidades convidadas, a verdade é que, por um lado, contrariamente ao que foi defendido por parte da doutrina, não se estabelecem critérios para a escolha das entidades a convidar (ainda que o IMPIC recomende a fundamentação dessa escolha), e que, por outro lado, a obrigação de convite a várias entidades continua a poder ser defraudada pela multiplicação artificial de propostas “de fachada” ou pelo “desdobramento” societário da (única) empresa que se queria convidar: não por acaso, a Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª sentiu necessidade de abordar este problema da aparência de concorrência, propondo o aditamento de um novo impedimento ao convite à apresentação das propostas, vedando o convite a “entidades especialmente relacionadas (…), considerando-se como tais, nomeadamente, as entidades que partilhem, ainda que apenas parcialmente, representantes legais ou sócios, ou as sociedades que se encontrem em relação de simples participação, de participação recíproca, de domínio ou de grupo” (cf. o novo n.º 6 do artigo 113.º e a nova redacção do n.º 2 do artigo 114.º do CCP, na versão da Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª)…
O tema é quente. Um legislador criativo e a colocar a carne toda no assador. O Prof. Marco Caldeira e Pedro Gonçalves acutilantes e a tocar nas feridas. Os tempos são indiscutivelmente difíceis. Mas nem oito nem oitenta. Uma solução intermédia será porventura a desejável.
O objetivo é erguer a economia em passada acelerada e utilizar o generoso contributo financeiro da UE (a bazuca). A dificuldade estará em aplicar oportunamente o dinheiro e fazê-lo chegar ao maior número de destinatários, sobretudo às PME. Portugal, como sabemos, é terreno fértil para muita litigância nos contratos públicos – por vários motivos que agora não importa dissecar. Um “sopro” impugnatório paralisa um concurso público. Isto poderá constituir um obstáculo. Um meio rápido para contornar o problema são as compras diretas ou desprovidas de um ambiente concorrencial aberto. Mas este caminho encerra dificuldades, tem perigos que não podem ser ignorados pelo legislador. Cabe a este a difícil tarefa de encontrar as melhores soluções. (1)
Na verdade, a Proposta de Lei n.º 41/XIV/1 (GOV), que estabelece medidas especiais de contratação pública e altera o Código dos Contratos Públicos e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cujo Texto de Substituição apresentado pela Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, no dia 16-10-2020, foi votado e aprovado na Reunião Plenária n.º 15 – disponível em
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=45053. No seu art.º 7.º trata dos procedimentos pré-contratuais no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR). Os valores dos contratos são francamente altos para o tipo de procedimentos que podem ser adotados pelas entidades adjudicantes: ajuste direto ou consulta prévia. Estando previsto que os procedimentos tramitam através da plataforma eletrónica (com algumas exceções, quando o valor do contrato a celebrar seja inferior aos referidos na alínea c) do artigo 19.º ou na alínea c) do n.º 1 do artigo 20.º do CCP).
Nas palavras do Prof. Marco Caldeira: “é um avanço, mas parece “curto”, sobretudo se o mercado não tiver forma de saber, em tempo útil, que foi promovido um procedimento de consulta prévia e que entidades foram convidadas.”.
É muito pouco mesmo. Até porque, face ao disposto no n.º 2 do art.º 7.º da Proposta de Lei n.º 41/XIV/1, não se aplicam as limitações constantes dos n.os 2 a 6 do artigo 113.º do CCP. Deste modo, é equacionável o cenário das adjudicações reiteradas aos mesmos operadores económicos e as consequências nocivas que acarreta são evidentes. Justifica a preocupação manifestada pelo Prof. Pedro Gonçalves.
Certamente, muita tinta (recheada de lustro) ficou na caneta do Prof. Marco Caldeira, mas o que aqui nos deixa (em jeito de reflexão crítica) é muito relevante e merece ser escutado com atenção, numa fase decisiva do projeto de diploma que esta na Assembleia da República.
Em termos paralelos, numa incursão ao direito comparado, verifica-se que em França a situação é alvo de mais cuidados. Ainda assim, o assunto é polémico, não é consensual. Apesar dos valores envolvidos, comparativamente aos nossos, serem mais modestos. Naquele país, no passado mês de setembro, a Assembleia Nacional aprovou a alteração apresentada pelo Governo ao Projet de Loi n° 2750 “ASAP” (Accélération et Simplification de l’Action Publique – http://www.assemblee-nationale.fr/dyn/15/amendements/3347/AN/1106), que prevê a celebração de contratos de empreitada de obras públicas, sem procedimento concursal, quando o valor estimado seja inferior a € 100.000, ex vi article 46 bis AB (nouveau), do citado Projet de Loi n° 2750, disponível no endereço: https://www.senat.fr/leg/pjl20-016.html. Porém, o legislador não abdica de uma regra comum nos procedimentos desprovidos de concorrência em França: “Les acheteurs veillent à choisir une offre pertinente, à faire une bonne utilisation des deniers publics et à ne pas contracter systématiquement avec un même opérateur économique lorsqu’il existe une pluralité d’offres susceptibles de répondre au besoin.”. E isto é bom. Creio mesmo mais eficaz que a nossa regra dos limites trienais.
O legislador português, decididamente, deve dar outros passos. Normas num ambiente de discricionariedade favorecem comportamentos que não são consentâneos com a transparência e a imparcialidade. Recentemente, o Prof. Miguel Assis Raimundo, defendeu o dever de fundamentar a identidade de quem é convidado, nos procedimentos de ajuste direto e consulta prévia. (Cfr. o autor, in “COVID-19 E CONTRATAÇÃO PÚBLICA – O Regime Excepcional do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março”, pág. 203, artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados) – disponível no endereço: https://portal.oa.pt/media/131421/miguel-assis-raimundo.pdf. (2)
Também seria uma boa medida publicitar as adjudicações no site das entidades adjudicantes. Promove um sentido de maior responsabilidade. As entidades adjudicantes sentir-se-ão mais expostas ao escrutínio. Gera uma pressão positiva. Permite-lhes, por outro lado, avaliar o seu desempenho. Facilita os controlos públicos. – Só vantagens!
Em síntese, quatro regras que muito beneficiariam os regimes excecionais de contratação pública que optam por procedimentos pré-contratuais fechados: i) fundamentar a escolha dos operadores económicos, ii) utilização da plataforma eletrónica, iii) publicitar as adjudicações no website das entidades adjudicantes, iv) diversificar a escolha dos operadores económicos.
Nada disto colide com os objetivos traçados. Potencia a utilização da “bazuca” em proveito de muitos e da economia.
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(1) Há pouco tempo, Pedro Gonçalves, num artigo de opinião no Observador, com o título: “Ajustes diretos de contratos públicos: equívocos perigosos”, foi bastante contundente, uma vez mais, o respeitado Professor de Coimbra – Cfr. no endereço: https://observador.pt/opiniao/ajustes-diretos-de-contratos-publicos-equivocos-perigosos/
(2) Leitura sugerida (a par de outras) pelo Prof. Marco Caldeira, precisamente neste
Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP:
https://contratospublicos.net/2020/07/31/ainda-a-contratacao-publica-relacionada-com-a-covid-19-leituras/
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