É hoje indiscutível que o Direito Europeu dos Contratos Públicos não considera irrelevante nem se desinteressa por contratos de valor inferior aos limiares de aplicação das Directivas. A doutrina plasmada na Comunicação Interpretativa de 2006 encontra-se, quanto a esse ponto específico, essencialmente correcta.
A dúvida reside em saber qual o critério que permite identificar os contratos de valor mais reduzido que devem ou não ficar sujeitos a obrigações concorrenciais de publicitação e de abertura ao mercado. Como é evidente, seria insustentável para a segurança jurídica que o aplicador/intérprete não encontrasse um patamar seguro de delimitação dessa fronteira concorrencial.
Esse foi o principal equívoco da Comunicação de 2006, que o TJUE, no Acórdão de 28-05-2010 (Processo T-258/06), não soube eliminar à nascença. Ao admitir que a identificação dos contratos que devem ou não estar submetidos a procedimentos concorrenciais poderia ficar dependente de uma apreciação casuística a ser formulada primeiro pela entidade adjudicante e a ser reformulada depois pelo juiz, o TJUE abriu então a porta para a criação de normas para-legislativas por um juiz-legislador. Esse fenómeno tem sido recorrente em Portugal. E não é por acaso que, em cada episódio em que o juiz vem criando normas para-legislativas derrogadoras das normas do CCP, acena singelamente com trechos do referido Acórdão de 2010 (ainda que omitindo interessadamente arestos posteriores que não favorecem essa criação jurisprudencial), de modo a encontrar um qualquer fundamento para a aprovação de normas legislativas de origem jurisprudencial.
A busca de um critério mais seguro de identificação dos contratos sujeitos a “princípios gerais de contratação pública” assentou, como é sabido, numa linha jurisprudencial que, baseando-se já numa ideia plasmada em arestos anteriores (por exemplo: Acórdão Comissão v. Irlanda, de 13-11-2007 – Processo C-507/03), foi concretizada depois no Acórdão Serrantoni (de 23-12-2009 – Processo C-376/08): somente quando comprovada a existência de um “interesse transfronteiriço certo” é que o juiz encontraria um ponto de apoio para impor à entidade adjudicante a aplicação de procedimentos concorrenciais com base nos princípios gerais do Tratado.
É isso mesmo que o intérprete encontra hoje no texto justificativo presente no Considerando 114 da Directiva 2014/24: é verdade que – como acima se disse – o legislador não se desinteressa absolutamente de contratos dotados de valor inferior aos limiares por si fixados. Todavia – e este é um ponto fundamental a notar -, o modo como pretende que eles sejam disciplinados é totalmente distinto daquele que muitos sectores interpretativos têm invocado.
Com efeito, o juiz ou o aplicador apenas poderão acenar com a necessidade de aplicação de princípios gerais dos Tratados se puderem apresentar “indicações concretas em contrário, nomeadamente um financiamento da União para projectos transfronteiriços”.
Bem se vê que esta postura moderada é radicalmente oposta à legiferação jurisprudencial que tem sido criada entre nós para cercear a formação de tais contratos: o legislador europeu esclarece que não existe qualquer automatismo que autorize o juiz a presumir que um determinado contrato abaixo dos limiares previstos nas Directivas deve ficar sujeito a um procedimento concorrencial. Cabe ao juiz, pelo contrário, esclarecer quais são as “indicações concretas” que pretende apresentar – seja a existência de “um financiamento da União” ou seja uma hipótese similar – que lhe permitam demonstrar que o interesse transfronteiriço no caso concreto é “certo”.
Algo bem diferente da curiosa inversão do ónus da prova em que os intérpretes embarcam, ao lerem no Considerando 114 algo que lá se não encontra e ao presumirem que o juiz pode exigir que seja o decisor público a promover a prova negativa de que não existem quaisquer indícios de interesse transfronteiriço.
Contra tal posição não pode acenar-se com a sugestão de recurso a outros limiares quantitativos (por exemplo, 10% dos limiares previstos nas Directivas, que eventualmente se adaptasse também para aplicar ao limiar de 750.000 euros previsto para contratos de “serviços à pessoa”) para a identificação dos casos em que o Direito Europeu reputa um contrato como seguramente irrelevante para os princípios gerais da contratação pública. Trata-se então de inverter a lógica e de deturpar o raciocínio agora exigido: o que está em causa não é saber quando é que o decisor público nacional pode ter a certeza de que o seu contrato não suscita qualquer interesse transfronteiriço; antes, está em causa saber qual é o grau de exigência – quais as balizas – a fixar a um juiz-legislador que presuma que a generalidade dos contratos abaixo dos limiares de aplicação das Directivas ou no âmbito dos (anteriores) sectores excluídos pode ser submetida a princípios gerais de contratação pública, dispensando-se de apresentar as referidas “indicações concretas” que demonstrem a existência do “interesse transfronteiriço certo”.
Tudo isto poderia ser evitado se o legislador português – se porventura estiver genuinamente interessado em promover a concorrência, indo mais longe do que o legislador europeu nesse desiderato (algo que é sem dúvida de aplaudir – se limitasse simplesmente a reduzir o leque de contratos excluídos do regime de contratação pública pelo n.º 4 do artigo 5.º e a fixar um limiar mais razoável do que os 750.000 euros que a Directiva 2014/24 apontou para serviços sociais e outros serviços específicos.
Ao contrário, numa disposição que só pode ser considerada como desastrosa para a segurança jurídica, o n.º 2 do artigo 6.º do Anteprojecto surge no contexto de um leque incompreensivelmente alargado de contratos afastados do regime de contratação pública (n.º 4 do artigo 5.º ); e, parecendo assegurar ao intérprete que tais contratos podem, ainda assim, ser submetidos a um procedimento competitivo, esclarece afinal que o procedimento concorrencial será de adoptar apenas se e na medida em que o juiz ou o intérprete (a começar pela própria entidade adjudicante a quem alegadamente se pretendia «vincular» à «concorrência»!) acharem que tal se “adequa” às “características” do contrato.
Parece, com o devido respeito, um fraco favor ao princípio da concorrência…
Em primeiro lugar, permitam-me saudar a iniciativa. E o excelente texto. Gostava de fazer uma pequena nota sobre este tema, com o devido respeito e com único propósito de tentar contribuir para a discussão.
Parto das seguintes premissas:
a) resulta do artigo 6.º, n.º 1 do Anteprojeto que todos os contratos do artigo 5.º e 5.º – A estão sujeitos aos princípios gerais da atividade administrativa;
b) resulta, também, do artigo 6.º, n.º 2 do Anteprojeto que aos contratos das alíneas c), g) e j) do n.º 4 do artigo 5.º são aplicáveis ainda os princípios gerais da contratação pública;
c) resulta, ainda, e por fim, do artigo 6.º, n.º 2, alíneas b) e c) do Anteprojeto que “na medida do adequado às características, dimensão do contrato e potenciais interessados” se deve observar a “garantia de igualdade entre todos os participantes” e a “fundamentação das decisões em critérios objetivos”.
A minha questão prende-se com o facto de que poder-se-ia entender que como as imposições das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 6.º do Anteprojeto só existem na medida do adequado às características, dimensão do contrato e potenciais interessados, então nos casos em que estas não sejam adequadas àquele contrato, esta parte da norma é inaplicável, mantendo-se no entanto de pé o regime geral do início do n.º 2 do artigo 6.º que determina que aplicam-se na totalidade os princípios da contratação pública, que a meu ver abrangem no seu conteúdo obrigações como por exemplo as presentes na alínea b) e c), criando um ciclo através do qual mesmo perante um juízo de inadequação acabam por ser aplicáveis na mesma? Ou seja, pode dar-se o caso, se levarmos à letra o ora exposto, que determinados contratos estejam sujeitos aos princípios da atividade administrativa, estejam ainda sujeitos aos princípios gerais da contratação, mas não estejam sujeitos à igualdade de tratamento dos participantes e à fundamentação em critérios objetivos, se tal não for adequado, sendo que essas obrigações surgem depois, na mesma, a meu ver, por fazerem parte ou ser derivações diretas dos princípios gerais da atividade administrativa e da contratação pública).
Assim, independentemente da concordância ou não com a adequação (ou seja, de este juízo dever existir ou não), creio que, a existir, esta deveria surgir noutros moldes, eventualmente em relação aos próprios princípios da contratação pública (ou seja, o juízo de adequação ser feito quanto à aplicação dos princípios gerais da contratação pública, surgindo as alíneas a seguir como eventuais explicitações de casos concretos destes decorrentes) ou então ser reformulada a parte final da norma do artigo 6.º, n.º 2 para obviar ao acima exposto.
Obrigado e mais uma vez parabéns pela iniciativa.
Atenciosamente,
PSA
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Meu Caro,
Muito obrigado pelas suas palavras e pela sua participação, que é sempre bem-vinda!
Concordo com o essencial da sua observação: creio que, na realidade, a redacção circular encontrada pelo Anteprojecto criará um total limbo de insegurança jurídica para os decisores públicos, que verdadeiramente não estarão certos sobre que obrigações (principialistas ou formais) se aplicarão a cada caso.
Como escrevi nos Comentários ao Anteprojecto que publiquei a semana passada com João Amaral – e sempre ressalvando o devido respeito pelos Autores do articulado -, creio que esse n.º 2 do artigo 6.º consistirá, se for aprovado, no preceito mais perigoso para o sistema de separação de poderes que actualmente conhecemos no Direito dos Contratos Públicos.
Sem prejuízo das inquestionáveis boas intenções subjacentes a esta disposição, parece ter-se esquecido que, até hoje, e sobretudo desde que há 10 anos a Comissão Europeia lançou uma Comunicação Interpretativa sugerindo a aplicação desses “princípios gerais” mesmo quando as regras formais das Directivas não fossem aplicáveis, nunca ninguém conseguiu esclarecer exactamente o que significavam esses princípios e em que obrigações concretas eles se traduziam.
É sintomático que, durante uma inteira década, os defensores dessa via principialista, insistindo na sua bondade, nunca conseguissem ultrapassar as meras proclamações teóricas para concretizar quais as exactas obrigações que deveriam ser exigidas às entidades adjudicantes.
É que, note-se, o mais longe que se foi – como também já aparecia previsto na Comunicação de 2006 – consistiu em sugerir a obrigação de publicitação que surge agora referida na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do Anteprojecto e que equivale a transformar o procedimento não concorrencial num procedimento concorrencial.
Ora, para prever uma obrigação dessas, era totalmente escusado enveredar por este limbo principialista: bastaria apenas criar uma regra que explicitamente submetesse uma ou mais categoria de contratos à Parte II do CCP.
Isto seria bem preferível à solução agora escolhida: iludindo completamente o leitor do articulado, afirma-se, no n.º 4 do artigo 5.º, que a formação desses contratos não está sujeita àquela Parte II, só para o leitor descobrir, logo no artigo seguinte, que afinal a Parte II poderá ainda ser aplicável, consoante o juízo de adequação casuística que a entidade adjudicante (e depois o juiz) venha a fazer.
Em suma: apesar de compreender a sua proposta, eu não ficaria satisfeito com a mera reformulação da parte final do n.º 2 do artigo 6.º. Creio que a sua supressão consiste na única via compatível com o princípio da segurança jurídica.
Atentamente,
PS
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Caríssimo,
Obrigado pelas “boas-vindas”. Não foi minha intenção propor a alteração da norma no específico sentido de eliminação da parte final do n.º 2 – pretendia formular apenas uma hipótese, tal como o seriam a eliminação ou uma outra redação. Tentei não fazer juízo sobre esse ponto, procurando mostrar apenas que, como está, pode levantar alguns problemas interpretativos e de circularidade.
Dito isto, e quanto à questão de fundo, essa sim, tão difícil, confesso que me preocupa também – não tenho uma solução, nem porventura uma opinião ainda totalmente cristalizada, mas tenho algumas notas, començando por levantar mais uma questão, em tom de provocação: fará diferença a adequação? Ou seja, a remissão principiológica geral não fará com que essa insegurança se possa manter, na medida em que a aplicação em maior ou menor grau dos princípios gerais da contratação pública depende da avaliação da entidade adjudicante (e, depois, do juiz)? (no fundo tento mostrar aqui o downside duma solução que elimine apenas o final do n.º 2)
Naturalmente que isto é uma provocação semi-condenada à partida, na medida em que claro que é diferente sujeitar a um juízo de adequação a aplicação das alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 6,º do Anteprojeto do que remeter para os princípios gerais da contratação e da atividade administrativa – mas este caminho, apesar de, como disse, com menor intensidade do que a pequena provocação que imaginei, acaba por continuar a mostrar que, de facto, é difícil compreender quais os princípios que se aplicam, de que forma se aplicam, e com que intensidade. Ainda que se elenquem os princípios gerais da contratação, quais deles não serão de aplicar àquele caso concreto? E quais deles deverão ser aplicados com a sua total força, ou qual poderá naquele caso ser sacrificado? Existe uma margem grande que pode perigar a segurança jurídica.
Dir-se-á que tal acontece em qualquer Código ou em qualquer diploma em que exista uma proclamação de aplicação de um determinado set de princípios, o que, sendo verdade, poderá porventura ser mais problemático neste caso porque trata-se de aplicar os princípios que acompanham todo o Código e de onde decorrem a grande maioria das suas regras particulares, a contratos aos quais as referidas regras não se aplicam, criando-se assim uma espécie de universo paralelo ad hoc em que pode tornar-se difícil colocar o intérprete a reconstruir uma regulação extravagante para o caso concreto que analisa (seja ele entidade adjudicante ou, depois, e eventualmente, juiz).
Atenciosamente,
PSA
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Meu Caro,
Concordo também com os temores de insegurança jurídica; e estou absolutamente certo de que, mesmo na hipótese de nada mudar e de este artigo 6.º voltar a desaparecer, a incerteza por parte dos decisores públicos continuaria grande. Isto tendo em conta que, com o actual regime – que é bem mais modesto na abertura para uma via principialista –, ainda assim os sectores mais “criativos” da jurisprudência não têm hesitado em derrogar, em bloco, diversas normas-regra previstas no CCP e substituí-las por normas criadas por si.
O meu ponto é o de que, se este é o cenário com um Código bem modesto no plano principialista, é inimaginável o que aconteceria com a entrada em vigor do n.º 2 do artigo 6.º.
Por isso, a minha proposta não é a de suprimir apenas a parte final do n.º 2 do artigo 6.º, mas sim todo esse n.º 2.
Desejavelmente, deveria manter-se a redacção presente no actual n.º 6 do artigo 5.º, que é suficientemente moderada no contexto do nosso sistema de separação de poderes.
Um abraço,
PS
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