Uma das novidades do Anteprojecto encontra-se no âmbito dos acordos-quadro, propondo-se o legislador aditar ao CCP um novo artigo 256.º-A, nos termos de cujo n.º 1 “[a]s entidades adjudicantes abrangidas por sistemas de compra vinculada, ao abrigo de um acordo-quadro, ficam excecionadas dessa vinculação caso demonstrem que, para uma dada aquisição, a utilização do acordo-quadro levaria ao pagamento de um preço pelo menos 10% superior ao preço praticado no mercado para objeto com as mesmas características e nível de qualidade”.
Não poderia estar mais de acordo com a solução de princípio agora adoptada.
Com efeito, já noutra sede tive oportunidade de constatar (e de escrever sobre) situações em que, por força de um excessivo apego do legislador aos benefícios da centralização, entidades adjudicantes se viram privadas de celebrar contratos mais vantajosos fora do Sistema Nacional de Compras Públicas (permito-me remeter para esse meu texto, “Instituições de Ensino Superior e Sistema Nacional de Compras Públicas (Observações sobre a jurisprudência do Tribunal de Contas)”, in Para Jorge Leite – Escritos Jurídicos, Volume II, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, páginas 79 a 97). Por outro lado, como advogado, também já me deparei com situações em que a aquisição no contexto de acordos-quadro celebrados por centrais de compras não era a mais vantajosa, mas em que o despacho ministerial de autorização para compra fora desse acordo-quadro (previsto no artigo 5.º/4 do regime do SNCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 37/2007, de 19 de Fevereiro) não era emitido em tempo útil (ou mesmo inútil…).
Por isso, desde há muito tempo que me encontro sensibilizado para a pertinência da argumentação de Miguel Assis Raimundo e Ana França Jardim (cf. “Dever de contratar através de acordo quadro – notas ao Sistema Nacional de Compras Públicas”, in Miguel Assis Raimundo, Estudos Sobre Contratos Públicos, AAFDL, Lisboa, 2010, páginas 286 a 291), no sentido de construir linhas argumentativas para legitimamente “romper” o “espartilho” da contratação centralizada, quando o interesse público assim o imponha. Feito este disclaimer, facilmente se compreende o meu aplauso a esta solução.
Não obstante, alguns aspectos deste novo regime ainda me parecem lacunares ou carecidos de clarificação:
(i) A primeira dúvida prende-se com saber se esta excepção à vinculação é automática ou se carece de algum procedimento prévio de “desvinculação” (por exemplo, nos casos do SNCP, esta será uma causa de dispensa do despacho ministerial ou apenas um fundamento adicional que permite solicitar essa dispensa)? No silêncio da lei, parece que nenhum formalismo ou trâmite é exigido, mas talvez não fosse pior clarificar este ponto – até porque não pode pensar-se numa solução destas sem ter presente o “peso” do SNCP no âmbito das compras centralizadas;
(ii) O segundo reparo prende-se, justamente, com a inserção sistemática da norma: se calhar, era um preceito que mais depressa encontraria acolhimento no Decreto-Lei n.º 37/2007 do que no CCP; de todo o modo, mesmo aceitando que é no CCP que esta norma deve ficar consagrada, penso que tal não isenta uma alteração ao regime do SNCP, aprovado pelo referido Decreto-Lei n.º 37/2007, para esclarecer a dúvida suscitada em (i);
(iii) Como é que a entidade adjudicante sabe que a compra fora do acordo-quadro será, pelo menos, 10% mais barata? Se for necessário lançar um procedimento pré-contratual para saber o que é que o mercado “fora” do acordo-quadro está a oferecer, ou prevê uma cláusula de não adjudicação (de duvidosa legalidade…) ou arrisca-se a ter de indemnizar o adjudicatário caso não possa celebrar o contrato, em virtude de a proposta adjudicada não atingir esse patamar de -10%. Talvez as consultas preliminares (artigo 35.º-B) possam constituir uma boa forma de “auscultar” o mercado e apurar os preços ali praticados, mas, nesse caso, como garantir o compromisso de que os preços das propostas (pelo menos, da proposta adjudicada) será pelo menos 10% mais barata? Os consultados poderão ser chamados a apresentar uma pré-proposta vinculativa, um qualquer compromisso nesse sentido?
(iv) Sabendo-se que o paradigma europeu (e, doravante, também nacional) em sede de critérios de adjudicação é a da escolha da “proposta economicamente mais vantajosa”, não será redutor cingir as hipóteses de desvinculação apenas à vantagem no factor “preço”? Compreendo que tenha de se avançar (ou que seja aconselhável fazê-lo) através de passos graduais, mas talvez pudesse ir-se mais longe desde já, e não limitar a desvinculação aos casos em que a oferta fora do acordo-quadro é mais barata, estendendo-a a todos os casos em que essa oferta seja globalmente mais vantajosa;
(v) Do mesmo modo, será adequado restringir esta possibilidade aos objectos “com as mesmas características e nível de qualidade”? É claro que tem de haver uma comparabilidade (para não “misturar alhos com bugalhos”), sob pena de não se poder perceber se o objecto a adquirir fora do acordo-quadro é mais barato porque sim ou apenas porque é pior. No entanto, talvez pudesse equacionar-se a abertura a outros parâmetros, permitindo-se a aquisição fora do acordo-quadro centralizado quando o nível de desempenho for superior e o acréscimo de preço (comparativamente à aquisição dentro do acordo-quadro) não exceder (xis) %;
(vi) De todo o modo, mesmo mantendo-nos só no factor “preço”, será que 10% será uma diferença adequada? Sabendo que os acordos-quadro (sobretudo, se celebrados por entidades com o peso negocial de uma central de compras…) propiciam a criação de enormes economias de escala, exigir que a aquisição fora do acordo-quadro seja pelo menos 10% mais barata não irá esvaziar o princípio (“dando com uma mão e tirando com a outra”)? Não tenho dados empíricos que me permitam chegar a uma conclusão, mas pergunto para saber se a fixação deste limiar se apoiou em algum estudo sobre a realidade concreta da nossa contratação centralizada, ou, porventura, em padrões internacionais;
Enfim, porventura todas estas questões radicam, antes de mais, numa pré-compreensão minha quanto ao problema de fundo: o de saber se sequer faz sentido haver uma vinculação jurídica à aquisição centralizada (o que implicaria repensar toda a lógica do SNCP). Mas creio que, independentemente da posição de princípio com que se olhe para a questão, a forma como o artigo 256.º-A se encontra redigido (e, sobretudo, o que nele falta desenvolver) não deixará de criar dificuldades ao intérprete, o que se arrisca a diminuir a utilidade prática de uma solução que, no plano teórico, me parece totalmente de aplaudir.
Boa tarde Caro Marco
Interessante tópico, e muito bem gizado, como é habitual.
Já agora, sendo utilizada a “consulta preliminar” ao Mercado, dever-se-á consultar os operadores económicos que são partes no acordo quadro, ou isso será entendido como uma pressão inadmissível?
A possibilidade de comparar as propostas entre o procedimento do acordo quadro, e o novo procedimento – vamos lhe chamar procedimento encadeado – não exige o mesmo critério de adjudicação e o mesmo método de avaliação das propostas?
Como poderá a “desvinculação” ser automática se a vinculação das entidades aderentes ao acordo quadro resulta de ato legislativo? Necessariamente o regime a adotar sempre seria o da natureza facultativa do recurso à central de compras por parte das entidades abrangidas, o que esvaziaria o objetivo do acordo quadro, maxime no Estado.
E sera admissível a abertura de procedimentos de formação de acordos quadro, e simultaneamente de procedimentos encadeados, ou que levaria ao mesmo objeto contractual, escolhendo a entidade adjudicante a que melhor lhe aprouvesse.
Cumprimentos,
Luís Alves
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