Ficou hoje disponível o n.º 2 do vol. IV da Revista eletrónica e-Pública, publicada pelo CIDP, que conta com um destaque temático dedicado à revisão do Código dos Contratos Públicos. Textos de José Azevedo Moreira, José Manuel Sérvulo Correia, Luís Verde de Sousa, Miguel Assis Raimundo, Pedro Telles e Ricardo Prelhaz Fonseca.
Ajuste directo e consulta prévia, Avaliação de propostas, Âmbito de aplicação da Parte II, contratos administrativos, Divulgação, Impedimentos, Lotes, procedimentos
O tipo de procedimento pré-contratual consulta prévia, previsto no CCP, tem sido alvo de muita crítica por parte de alguma doutrina, o exemplo mais recente está no texto de Pedro Telles, acabado de publicar na
e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público, cujo título do estudo: “Ajuste directo e consulta prévia: é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma”, por si só já constitui uma censura à modalidade procedimental acolhida pelo legislador.
Comungo das preocupações do autor, que muito respeito, mas sobre a consulta prévia prefiro outro ângulo de abordagem e solução para o eventual problema suscitado por este novo procedimento pré-contratual.
Insistentemente alguns setores da doutrina teimam em desvalorizar a consulta prévia e apontar-lhe debilidades para justificar a sua inidoneidade, numa visão por vezes fundamentalista e preconceituosa, estribada em argumentos que direcionam para a falta de seriedade das entidades adjudicantes e dos operadores económicos.
Não me revejo na ideia de que a consulta prévia é um ajuste direto disfarçado, que potencia a adjudicação a uma entidade determinada (o que implicaria serem convidados operadores económicos para servirem de figurantes e assumirem um papel passivo no procedimento), a perspetiva de que a consulta prévia possa ser constituída por “ fantasmas”.
A expressão financeira do valor do contrato associado ao procedimento de consulta prévia, o regime dos limites trienais, a publicitação do contrato no portal dos contratos públicos, a fundamentação da decisão de contratar e da escolha do procedimento, a tramitação na plataforma eletrónica, não serão ferramentas suficientes para evitar comportamentos ilícitos e viabilizar a consulta prévia como instrumento também ao serviço da concorrência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação? Acredito que sim.
É certo que quem quiser contornar a lei arranjará sempre forma de o fazer, mas então o problema não reside na consulta prévia mas sobretudo no aplicador, naquele que toma as decisões, e para isso existem e deverão funcionar as medidas preventivas: planos de prevenção da corrupção, fiscalização, auditorias, aplicação de sanções aos infratores.
Não olho com desdém para a consulta prévia, reconheço-lhe virtudes: possibilita a participação de 3, 4, 5, 6, 7….operadores económicos, que poderão e nalguns casos deverão ser diversificados de procedimento para procedimento, e concomitantemente permite às entidades adjudicantes em contratos de menor dimensão financeira satisfazer as necessidades de forma mais célere. Tudo isto em linha com o desiderato da igualdade de tratamento e da não-discriminação e com as medidas de simplificação, desburocratização, propugnadas pelo legislador na revisão do CCP, decorrente da transposição das Diretivas de 2014.
Porém, já sou crítico à forma inadequada como o legislador definiu alguns aspetos da tramitação da consulta prévia. Pois sendo esta um procedimento de natureza concorrencial, a possibilidade de poder tramitar fora da plataforma eletrónica (art.º 62/1 – 115/1/g – 115/4 do CCP), a ausência de modelo de avaliação das propostas (art.º 115/2/b do CCP) e a adoção da consulta nas situações dos critérios materiais previstos para o ajuste direto (art.º 27-A do CCP), colide com os princípios, designadamente, da imparcialidade, transparência, igualdade e concorrência. Não estarão minimamente assegurados.
Embora a regra seja que as propostas são apresentadas diretamente em plataforma eletrónica (art.º 62/1 do CCP), ainda assim permite-se outro meio eletrónico que não a plataforma, conforme previsto no art.º 115/1/g) do CCP, e art.º 115/4 do CCP. Ora, o fax e o correio eletrónico, por exemplo, não são meios seguros, existe a possibilidade de fuga de informação, o júri e outras pessoas podem ter conhecimento das propostas em data anterior à prevista para apresentação destas.
A situação assume contornos de maior preocupação se for escolhida a consulta prévia ao abrigo do art.º 27.º – A, em que o valor do contrato pode suplantar várias vezes o inerente ao concurso público com publicidade internacional, isto considerando que ao abrigo dos critérios materiais a escolha é feita independentemente do valor (salvo algumas exceções).
A propósito da adoção da consulta prévia nas situações previstas no art.º 24.º a 27.º do CCP, existe uma delas, precisamente a do art.º 24.º/1/c) do CCP, relativa ao ajuste direto urgente, que numa primeira abordagem levanta dúvidas o recurso a mais do que uma entidade e a compatibilidade com a consulta prévia. Isto porque a urgência imperiosa apela a algo que tem que ser realizável no imediato. Assim, se a consulta prévia (com tramitação mais morosa) é exequível nesta situação, então esvaiu-se a necessidade iminente da aquisição e o pressuposto do ajuste direto urgente. Por conseguinte, o critério da urgência do ajuste direto não pode ser o mesmo do da consulta prévia. Terá que se ponderar mais que um cenário de urgência, cuja conclusão poderá não passar pela adoção da consulta prévia mas por outro procedimento pré-contratual (v.g. concurso público). A consulta prévia não deverá tornar-se na válvula de escape de todas as situações em que não se aplica o ajuste direto. Mais, mesmo que deva ser aplicável a consulta prévia, sempre que possível deverá o regime geral ser o escolhido em detrimento da adoção por via dos critérios materiais, sob pena de se frustrar o regime dos limites trienais.
Voltando à questão da tramitação e dos meios eletrónicos, constata-se tanto no CCP como nas Diretivas ao maior valor do contrato está associada uma maior exigência procedimental, seguramente por razões de transparência, igualdade e concorrência, por isso um procedimento (consulta prévia) também ele de natureza concorrencial (mitigada é certo, mas concorrencial, insistimos) cujo valor do contrato poderá ser significativo, deverá merecer por parte das entidades adjudicantes adequada ponderação e uma decisão inclinada para a utilização da plataforma eletrónica.
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E porque não finalizei o comentário anterior, cria ainda acrescentar que censuro também o facto da possibilidade de adjudicação direta a um operador económico sem sujeição a um mínimo de concorrência. Mas este cenário no futuro será possível apenas em contratos de valor quase quatro vezes inferior ao limiar atual do ajuste direto (Cfr. art.º 20.º/1/a) do CCP e art.º 20.º/1/d) da versão do CCP em vigor a partir de 2018). E a adjudicação que é possível apenas a um operador económico passará a ser a possibilidade de um de um universo de pelo menos três. (Cfr. art.º 20.º/1/a) e art.º 112.º do CCP e art.º 20.º/1/c) da versão do CCP em vigor a partir de 2018).
Algo vai mudar, inegavelmente.
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