A revisão de 2017 do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) veio introduzir algumas alterações em matéria de habilitação – algumas boas, outras nem por isso.

Há dias, por diploma avulso (mas complementar face ao CCP), surgiu um regime que visa simplificar essa fase: refiro-me ao regime do Portal Nacional dos Fornecedores do Estado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2018. Este regime, em vigor a partir de 1 de Janeiro de 2019 (artigo 22.º) e aplicável unicamente aos procedimentos que se iniciem a partir da sua entrada em vigor (artigo 21.º/1), assenta na criação de uma plataforma informática, de adesão voluntária, que agrega informação sobre a situação fiscal e contributiva dos operadores económicos, bem como informação sobre a respectiva idoneidade do ponto de vista do registo criminal (artigo 1.º/2 e 3). Esta plataforma deverá ser criada e gerida pelo IMPIC (artigo 4.º), devendo ser interoperável com o Portal Base (artigo 5.º/2). A ideia, em síntese, é permitir que os operadores económicos que adiram a este Portal de Fornecedores fiquem dispensados de apresentar os documentos comprovativos de que não se encontram em qualquer situação de impedimento decorrente da sua situação tributária, contributiva ou criminal (artigo 3.º/2).

Em termos gerais, a intenção do regime é boa, podendo até pensar-se, no futuro, na transição para um sistema de inscrição obrigatória no Portal – com a consequente dispensa da fase da habilitação tal como a conhecemos, que, nesse caso, passaria a uma mera verificação formal junto do Portal, pela entidade adjudicante, da situação do adjudicatário. Aliás, sobretudo quando a entidade adjudicante é o Estado, a mera obrigação de demonstrar que não se deve ao Fisco nem à Segurança Social, nem se foi condenado pela prática de qualquer crime, não deixa de ser algo paradoxal, já que, se há entidade que tinha o dever de conhecer essas informações essa é, precisamente, o Estado…

Seja como for, há aspectos do regime que, mais uma vez (como sucedeu com a revisão de 2017 do Código), são relegados para futuras portarias governamentais, nomeadamente a questão da diferenciação de acesso à informação (artigo 5.º/6) e o montante da taxa a pagar pela inscrição no Portal e a manutenção, nele, do registo criminal do operador económico (melhor, dos titulares dos respectivos órgãos de administração, direcção ou gerência) (artigo 17.º). O primeiro aspecto é particularmente relevante no que concerne à protecção dos dados fornecidos pelos operadores económicos – preocupação que, de resto, me parece ser transversal a todo o Decreto-Lei n.º 72/2018 (mas que pode, eventualmente, vir a ser vulnerada pelo regime da portaria que virá regulamentar o seu artigo 5.º/6).

De notar, ainda, que não estamos perante qualquer sucedâneo do “certificado de inscrição em lista oficial de fornecedores de bens móveis ou de prestadores de serviços (…) que revele a titularidade das habilitações adequadas e necessárias à execução das prestações objecto do contrato a celebrar”, a que se referia o anterior artigo 81.º/4 do CCP (e que foi, em boa hora, revogado, já que tal documento não existia, o que suscitava diversas dúvidas quanto ao documento a apresentar em sua substituição, tendo-se a prática orientado, à falta de melhor, no sentido de dever ser apresentada a certidão de registo comercial).

Do mesmo modo, estas informações não abrangem outros impedimentos além daqueles a que o próprio Decreto-Lei n.º 72/2018 se refere (por remissão para o CCP), pelo que não está aqui incluído, nomeadamente, o impedimento previsto no artigo 55.º/1, alínea l) do CCP – continuando, portanto, a suscitar-se a questão prática de saber de que modo pode a entidade adjudicante ter conhecimento do incumprimento de contratos anteriores pelo operador económico, se tais contratos não tiverem sido celebrados consigo.

Além de questões relativas a eventual falsidade de declarações ou discrepância (nomeadamente, por desactualização) entre as informações constantes do Portal e a realidade (veja-se, com relevância, os artigos 9.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 72/2018), será interessante saber se a possibilidade de um acesso mais amplo à informação dos demais concorrentes ou candidatos – nos termos que ainda virão a ser estabelecidos por portaria, pela qual há que aguardar – não levará cada operador económico a suscitar eventuais impedimentos logo em fase de audiência prévia, antecipando para a fase da análise das propostas ou candidaturas uma discussão que normalmente só se teria em fase de habilitação (excepto quando o operador económico, por algum motivo, tivesse conhecimento da existência de dívidas fiscais ou contributivas, bem como da condenação judicial pela prática de crimes, por parte dos seus competidores).