O novo artigo 318.º-A do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) – que prevê a cessão de posição contratual, em caso de incumprimento grave pelo co-contratante, ao operador económico que tenha participado no anterior procedimento pré-contratual e cuja proposta tenha ficado ordenada no lugar imediatamente subsequente – suscita diversos problemas.
Não é objectivo deste post tratá-los aqui, até porque boa parte já foi (pelo menos) aflorada pela doutrina, destacando aqui, naturalmente, os textos de Paulo Otero (“Incumprimento e cessão da posição contratual: alguns problemas decorrentes do novo artigo 318.º-A do CCP”, in Revista de Contratos Públicos, n.º 16, Março de 2018, páginas 5 a 15), Miguel Lorena Brito (“A modificação subjectiva do contrato no Código dos Contratos Públicos revisto”, in AA.VV., Comentários à revisão do Código dos Contratos Públicos, 2.ª edição, AAFDL, Lisboa, 2018, páginas 1206 a 1210) e de Pedro Leite Alves (“Alguns problemas em sede de execução e (in)cumprimento do contrato”, in AA.VV., Comentários à revisão do Código dos Contratos Públicos, 2.ª edição, AAFDL, Lisboa, 2018, páginas 1217 e seguintes).
Naturalmente que os textos acima referidos – o primeiro, mais esquemático e problematizante, e o último mais crítico – não esgotam a análise que se impõe às múltiplas questões levantadas por este inovador mecanismo legal – espera-se ter oportunidade de voltar a algumas delas num outro post.
Uma dessas questões, que motiva este post, é a de saber se essa cessão de posição contratual é obrigatória e imperativa para o concorrente cuja proposta tenha ficado em segundo lugar e que seja designado pelo contraente público.
A minha perplexidade perante a mera colocação da questão – que, ainda há dias, foi objecto de amplo debate numa conferência – conduziu-me a abordar o tema desde já, para referir que, em minha opinião, não pode haver a mínima dúvida de que essa cessão é, só pode ser, voluntária para o cessionário.
O cedente, parece, de facto não tem hipótese de se opor à cessão, que lhe é apresentada como uma medida do contraente público no âmbito da execução do contrato, em alternativa à sua resolução – restando-lhe o recurso às vias de impugnação administrativa e judicial ao seu dispor.
Agora, para o (potencial) cessionário, a cessão não pode ser senão voluntária.
É certo que o termo “interpelação” no n.º 2 não é totalmente inequívoco, e que o n.º 4 do mesmo preceito também não ajuda, ao prever que “[a] cessão da posição contratual opera por mero efeito de ato do contraente público, sendo eficaz a partir da data por este indicada”.
Mas, apesar da imprecisão do legislador – tanto mais indesejável quanto estamos perante mecanismos com o impacto que este tem –, afigura-se que a conclusão não pode ser esta: a de que a cessão é voluntária para o cessionário.
Por um lado, o artigo 318.º-A, n.º 2, ao dispor que “[o] contraente público interpela, gradual e sequencialmente, os concorrentes que participaram no procedimento pré -contratual original, de acordo com a respetiva classificação final (…)”, tem claramente subjacente a possibilidade de recusa por parte dos concorrentes abordados, quando prevê que há uma interpelação “gradual e sequencial”: ora, esta previsão só faz sentido na hipótese de os concorrentes que foram primeiramente interpelados poderem recusar, pois só nesse caso se torna necessário o contraente público interpelar sequencialmente os demais concorrentes.
Por outro lado, se a cessão fosse imperativa (e a interpelação gradual estivesse reservada para casos de impossibilidade, v.g., para os casos de extinção do concorrente), o legislador teria de tê-lo dito de forma expressa.
Acresce que o n.º 6 esclarece que “[a]s obrigações assumidas pelo cocontratante depois da notificação (…) apenas vinculam a entidade cessionária quando este assim o declare, após a cessão”.
Adicionalmente, repare-se que os concorrentes só estão vinculados à celebrar contrato nos termos da proposta apresentada enquanto perdurar o respectivo prazo de manutenção, podendo desvincular-se dela se a adjudicação for proferida após esse prazo (cf. artigos 65.º e 76.º, n.º 3 do CCP). Ora, se assim é, relativamente à sua própria proposta, por maioria de razão isso terá de ser assim quando se sabe que o que o artigo 318.º-A, n.º 3 prevê não é a celebração do contrato nos termos da proposta apresentada por cada concorrente, mas sim da proposta apresentada pelo adjudicatário original (e que ascendeu à posição de co-contratante).
Seria estranho, de resto, que a entidade adjudicante não pudesse obrigar o adjudicatário original a celebrar o contrato sem ter de recorrer aos Tribunais* e depois, em fase de execução, pudesse autoritária e unilateralmente impor o contrato a quem nem sequer foi adjudicatário.
Por fim, note-se que o artigo 318.º-A do CCP nem sequer constitui uma base legal directamente habilitante para a cessão da posição contratual, permitindo apenas que a entidade adjudicante / contraente público possa prever a adopção de tal mecanismo. Ao dispor que “[o] contrato pode prever que, em caso de incumprimento, pelo cocontratante, das suas obrigações, que reúna os pressupostos para a resolução do contrato, o cocontratante ceda a sua posição contratual ao concorrente do procedimento pré-contratual”, o legislador está, também aqui, a reconhecer que, para o cessionário, a cessão só pode ser voluntária, pois o contrato celebrado entre o contraente público e o co-contratante não pode impor obrigações a terceiros, que não são parte na relação contratual. Assim, não estando directamente vinculado pela lei a aceitar a cessão, nem estando abrangido por qualquer obrigação contratual nesse sentido, não há fundamento para considerar que os concorrentes no procedimento pré-contratual antecedente estão obrigados a aceitar a cessão: nem a lei é, nem o contrato poderia ser, fonte dessa obrigatoriedade**.
Em suma: à luz da lei, não se vê argumento suficientemente ponderoso para poder concluir que ali se prevê uma cessão de posição contratual “forçada” (para o cessionário); e, se tivesse sido essa a opção do legislador, sempre estaríamos perante um regime inconstitucional. De facto, à luz da liberdade de iniciativa económica e do direito de propriedade privada (cf. artigos 61.º e 62.º da Constituição), não pode um operador económico ser obrigado a celebrar um contrato com um contraente público, nos termos de uma proposta que não é a sua e já depois de expirado o prazo de manutenção das propostas.
O nome disso não é “cessão da posição contratual”, mas sim requisição civil…
* Refira-se que o artigo 105.º, n.º 4 do CCP apenas prevê a “execução específica” por parte do adjudicatário, e não por parte do contraente público. No entanto, já tem sido admitido que tal não exclui que também este último possa recorrer aos Tribunais, nos termos gerais, para obter a condenação do adjudicatário na outorga do contrato.
** Pode sempre dizer-se, claro, que, apesar de o legislador só dizer que este mecanismo pode ser previsto no contrato, na verdade o contrato não poderia regular ex novo esta matéria e que a mesma sempre teria de vir previamente disciplinada nas peças procedimentais; e que estas peças poderiam prever a aceitação, por todos os concorrentes, da cessão que viesse a ser decidida em sede contratual.
Mesmo admitindo (a benefício do raciocínio) que as peças do procedimento pudessem, por exemplo, indicar como documento das propostas a aceitação, por cada concorrente, da futura cessão que viesse a ser operada a seu favor – e assumindo que os operadores económicos estariam dispostos a correr esse risco, já que a cessão destinar-se-ia a executar um contrato nos termos da proposta de outro concorrente –, ainda assim sempre poderia dizer-se que, nesse caso, a cessão não é obrigatória. Ela carecia de prévio e expresso consentimento pelos concorrentes – simplesmente, no caso, esse consentimento terá sido dado a título de concretização eventual e de forma antecipada, durante o próprio procedimento pré-contratual, e não apenas em sede de execução do contrato, perante uma situação de incumprimento concretamente verificada.
SERIA VOLTAR AS PODERES EXORBITANTES DE 1902
Palpitante este art.º 318.º-A do CCP, de previsão normativa de difícil apreensão, a exigir esforço exegético assinalável em alguns dos seus aspetos; propício a dissídios doutrinais e jurisprudenciais; convidativo a reflexões profundas, numa vertente do regime substantivo dos contratos públicos complexa e com muito caminho por desbravar. Perspetivam-se candentes debates em torno desta norma.
Na verdade também julgo que seria contra legem impor a um operador económico – no âmbito de um incumprimento contratual para o qual não contribuiu – a execução de uma fatia do contrato (novo, já lá irei) nas condições contratuais assumidas pelo cocontratante inicial que moldou a sua proposta a um objeto contratual diferente – mais amplo – eventualmente apresentando um preço muito competitivo fruto de uma estratégia comercial baseada em economias de escala, e sem que se vislumbre que o cessionário possa beneficiar de algum reequilíbrio financeiro para o que resta do contrato.* A situação terá ainda maiores proporções se juntarmos a isto o facto da proposta do cocontratante ter sido adjudicada (por hipótese) no âmbito da apresentação de um preço anormalmente baixo.**
Perante tal cenário, em circunstâncias tão desvantajosas e desiguais, que vínculo pode a lei exigir a um operador económico? A aceitação voluntária da cessão; o direito a dizer não, são mais consentâneos com o “bloco de legalidade”.***
Mas vamos ao texto, aos detalhes da norma. Verifica-se que a interpelação dos concorrentes visa a identificação daquele que será o cessionário, e é prévia ao ato que determina a cessão e respetiva notificação, como resulta da interpretação conjugada do n.º 1, 2 e 4 do art.º 318.º-A.**** Este rito procedimental, digamos assim, convoca um pensamento legislativo no sentido da não imposição da cessão. E, sobretudo, num aspeto da norma que julgo determinante e chamado à colação de maneira assertiva pelo Dr. Marco Caldeira, que com estribo no n.º 2 do art.º 318.º -A, referiu: “(…) quando prevê que há uma interpelação “gradual e sequencial”: ora, esta previsão só faz sentido na hipótese de os concorrentes que foram primeiramente interpelados poderem recusar, pois só nesse caso se torna necessário o contraente público interpelar sequencialmente os demais concorrentes.”.*****
A norma não comporta sinais reveladores da vinculação dos concorrentes à cessão da posição contratual. Não existe um dever, a cessão terá que ser aceite pelo operador económico para que possa produzir na esfera jurídica deste os correspondentes efeitos jurídicos.******
Mesmo, o n.º 5, in fine, do art.º 318.º-A, não afasta o caráter voluntário aduzido, pois nele constam unicamente os efeitos que se produzem com a constituição da cessão (consentida, digo eu). E, consequentemente – outra conclusão retiro – tratando-se de uma faculdade, não terão os operadores económicos que justificar a não aceitação da cessão.
Como vimos, o desiderato da norma é garantir um operador económico para a execução do “resto” de um contrato que o cocontratante inicial incumpriu. O que falta executar o legislador considera um novo contrato. Aproveitar os concorrentes do procedimento pré-contratual anterior e a proposta do adjudicatário. É de natureza subjetiva a modificação, a esta se circunscreve a previsão do art.º 318.º-A. Assim, nem por factos ocorridos no decorrer do contrato objeto da cessão será viável aplicar o regime do reequilíbrio financeiro para subsistência do contrato, à luz das modificações objetivas. A solução, neste caso, será a realização de novo procedimento adjudicatório.*******
Por tudo isso, os riscos envolvidos são consideráveis, incompatível com a ideia de vinculação, a merecerem uma ponderação casuística. De um lado os operadores económicos podem não ter capacidade para executar o contrato nos termos firmados pelo cocontratante;******** por parte do contraente público a existência fundamentos credíveis de que a cessão culminaria no incumprimento do contrato.*********
Diria então, em resposta às questões que deixei em aberto, que pode o contraente público optar pela resolução em detrimento da cessão. Não podem os concorrentes reclamarem o direito à cessão (quando a opção seja a resolução) e podem renunciar à cessão quando interpelados.
Em suma, acompanho a posição do Dr. Marco Caldeira, que alicerçado em argumentos sobejamente convincentes, considera que a cessão prevista no art.º 318.º-A do CCP é voluntária para o cessionário.**********
Acrescentaria apenas que uma interpretação com pendor diferente, além de não caber no art.º 318.º-A do CCP, afronta, designadamente, os princípios da justiça e da razoabilidade, e da proporcionalidade, nos termos do art.º 8.º do CPA e art.º 1.º-A do CCP. Seria voltar a uma França distante, aos poderes exorbitantes de 1902.*********** O art.º 318.º-A é uma norma excecional, exige rigor na sua interpretação e aplicação.
Para finalizar mais algumas reflexões num contexto mais geral.
O n.º 2, in fine, do art.º 318.º-A do CCP, dispõe “…novo contrato para a adjudicação da conclusão dos trabalhos.”. A expressão “trabalhos” é terminologia associada a empreitadas de obras públicas. Porém, o art.º 72.º, da Diretiva 2014/24/UE, consente obras, serviços ou fornecimentos.
Caducando a adjudicação no procedimento adjudicatório, nos casos do art.º 86.º, art.º 91.º e art.º 105.º, todos do CCP, sendo adjudicada a proposta ordenada no lugar subsequente, pode mais tarde, ao abrigo do art.º 318.º-A, o concorrente cuja proposta foi preterida ser interpelado para efeitos da cessão. A resposta parece perentória: Não. Mas, não tendo o respetivo operador económico sido objeto ainda da sanção de proibição de participação, nos termos do art.º 460.º do CCP, por infração da alínea b) do art.º 456.º e alínea a) e b) do art.º 457.º, ambos do CCP, a posição a tomar poderá não ser assim tão evidente quanto à participação do concorrente na nova relação contratual.
Se estiverem empatadas as propostas dos concorrentes (face à ordenação nos últimos lugares e porque as peças do procedimento, indevidamente, não previram regras de desempate, por esse facto o júri, os concorrentes e o órgão competente para a decisão de contratar desconsideraram) é interpelado o seguinte, para efeitos da cessão nos termos do art.º 318.º-A do CCP, ou realiza-se um procedimento de desempate.
Como se vê poderá não ser fácil diante de casos concretos. Verifico que várias entidades adjudicantes contemplam nos cadernos de encargos, dos respetivos procedimentos adjudicatórios, cláusulas relativas à cessão da posição contratual por incumprimento do cocontratante. Todavia, em alguns casos, limitam-se a fazer uma remissão para o art.º 318.º-A do CCP. É insuficiente. Devem detalhar de forma clara e precisa o seu âmbito de aplicação, de forma a poder aplicar-se num ambiente de transparência e igualdade. No fundo, torná-la exequível.
______________________
*Este último aspeto não é despiciendo, merece ponderação, pois a norma visa salvaguardar o interesse público e é nitidamente desequilibrada para o lado do cessionário. O ambiente não é de justiça contratual.
** E sabe-se que a averiguação da idoneidade do preço, a análise da justificação dada pelos concorrentes (ao abrigo da discricionariedade do júri), é algo – permitam-me o gracejo – que em muitos casos é do domínio da religiosidade, da fé – basta ser crente. Ninguém vai à fábrica verificar a modernidade do equipamento e a capacidade do mesmo para produzir mais barato.
Neste contexto, de um peso excessivo sobre o cessionário, como encarar o disposto no artigo 281.º do CCP: “O contraente público não pode assumir direitos ou obrigações manifestamente desproporcionados (…)“.
*** Se assim não for, a capacidade do operador económico (cessionário) para executar o que resta do contrato (novo ?) e o risco de incumprimento, são dúvidas que pairam e não devem ser ignoradas. Suscita a indagação de um outro cenário: a possibilidade do contraente público desvincular-se do dever de interpelar os concorrentes para efeitos da cessão; e também, até que ponto existe um direito ao exercício da cessão pelos concorrentes. Colocando o problema de uma outra forma: Pode o contraente público abdicar da cessão e optar pela resolução? Podem os concorrentes reclamarem o direito à cessão? Note-se que o interesse contratual pode existir e ser relevante para os concorrentes (cessionários), por exemplo, mediante a oportunidade de pegar num contrato volumoso numa fase ainda inicial.
**** Tudo depois de realizado o procedimento administrativo tendente à verificação dos pressupostos da resolução do contrato por incumprimento.
***** Cf. Marco Caldeira “Artigo 318.º-A”, texto publicado no Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP, disponível no endereço: https://contratospublicos.net/2018/11/25/artigo-318-o-a/
****** No sentido da necessidade de aceitação inclina-se igualmente Pedro Leite Alves. (Cf. “Alguns problemas em sede de execução e (in)cumprimento do contrato”, in Comentários à Revisão do Código dos Contratos Públicos, 2.ª Edição, 2018 – AAFDL Editora.
******* Sublinhe-se que apesar da ligação ao contrato inicial – na perspetiva do objeto do “novo contrato” consistir num pedaço do que falta executar – existe uma nova relação contratual, cujas prestações contratuais serão executadas num cenário diferente das condições iniciais fixadas no caderno de encargos e insuscetível de se ter refletido na proposta do cocontratante e restantes concorrentes (mesmo estando prevista a cessão, pois em rigor não se sabe antecipadamente quando pode ocorrer), juntando-se-lhe uma modificação no conjunto algo de novo e substancial emerge e que necessariamente terá que ser submetido à concorrência do mercado, no respeito pelos princípios da concorrência, transparência, igualdade de tratamento e da não-discriminação.
********A inexistência de condições poderá ser um fator condicionador à aplicação do art.º 318.º-A (Cf. Pedro Matias Pereira, “Modificação subjetiva, pagamentos diretos a subcontratados e resolução do contrato: novidades do CCP revisto”, Revista de Contratos Públicos, N.º 17, abril de 2018, pp. 32.
Ou ainda, na minha opinião, decorrente de impossibilidade, por via dos impedimentos nos termos do art.º 55.º do CCP. E, também, porque em termos económicos pode não interessar ao concorrente.
*********Motivações similares ao vertido no art.º 324.º do CCP, embora serão razões de interesse público que ditarão a decisão a proferir.
********** Cf. Marco Caldeira “Artigo 318.º-A”, texto publicado no Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP, disponível no endereço: https://contratospublicos.net/2018/11/25/artigo-318-o-a/
A mesma opinião é perfilhada por Pedro Matias Pereira, “Modificação subjetiva, pagamentos diretos a subcontratados e resolução do contrato: novidades do CCP revisto”, Revista de Contratos Públicos, N.º 17, abril de 2018, pp. 31 e pp. 33, ponto 2.3. e ponto 2.3.2.
*********** Recordando o que se passou em França, onde unilateralmente um tribunal superior admitiu pela primeira vez o poder unilateral de modificação do contrato em benefício da administração, numa situação que envolveu a alteração do objeto do contrato de forma insustentável para o contraente privado. (Cf. Conseil d’Etat, 10 janvier 1902, n.º 94624) –
http://www.conseil-etat.fr/Decisions-Avis-Publications/Decisions/Les-decisions-les-plus-importantes-du-Conseil-d-Etat/10-janvier-1902-Compagnie-nouvelle-du-gaz-de-Deville-les-Rouen
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SERIA VOLTAR AS PODERES EXORBITANTES DE 1902
Palpitante este art.º 318.º-A do CCP, de previsão normativa de difícil apreensão, a exigir esforço exegético assinalável em alguns dos seus aspetos; propício a dissídios doutrinais e jurisprudenciais; convidativo a reflexões profundas, numa vertente do regime substantivo dos contratos públicos complexa e com muito caminho por desbravar. Perspetivam-se candentes debates em torno desta norma.
Na verdade também julgo que seria contra legem impor a um operador económico – no âmbito de um incumprimento contratual para o qual não contribuiu – a execução de uma fatia do contrato (novo, já lá irei) nas condições contratuais assumidas pelo cocontratante inicial que moldou a sua proposta a um objeto contratual diferente – mais amplo – eventualmente apresentando um preço muito competitivo fruto de uma estratégia comercial baseada em economias de escala, e sem que se vislumbre que o cessionário possa beneficiar de algum reequilíbrio financeiro para o que resta do contrato. (1) A situação terá ainda maiores proporções se juntarmos a isto o facto da proposta do cocontratante ter sido adjudicada (por hipótese) no âmbito da apresentação de um preço anormalmente baixo. (2)
Perante tal cenário, em circunstâncias tão desvantajosas e desiguais, que vínculo pode a lei exigir a um operador económico? A aceitação voluntária da cessão; o direito a dizer não, são mais consentâneos com o “bloco de legalidade”. (3)
Mas vamos ao texto, aos detalhes da norma. Verifica-se que a interpelação dos concorrentes visa a identificação daquele que será o cessionário, e é prévia ao ato que determina a cessão e respetiva notificação, como resulta da interpretação conjugada do n.º 1, 2 e 4 do
art.º 318.º-A. (4) Este rito procedimental, digamos assim, convoca um pensamento legislativo no sentido da não imposição da cessão. E, sobretudo, num aspeto da norma que julgo determinante e chamado à colação de maneira assertiva pelo Dr. Marco Caldeira, que com estribo no n.º 2 do art.º 318.º -A, referiu: “(…) quando prevê que há uma interpelação “gradual e sequencial”: ora, esta previsão só faz sentido na hipótese de os concorrentes que foram primeiramente interpelados poderem recusar, pois só nesse caso se torna necessário o contraente público interpelar sequencialmente os demais concorrentes.”. (5)
A norma não comporta sinais reveladores da vinculação dos concorrentes à cessão da posição contratual. Não existe um dever, a cessão terá que ser aceite pelo operador económico para que possa produzir na esfera jurídica deste os correspondentes efeitos jurídicos. (6)
Mesmo, o n.º 5, in fine, do art.º 318.º-A, não afasta o caráter voluntário aduzido, pois nele constam unicamente os efeitos que se produzem com a constituição da cessão (consentida, digo eu). E, consequentemente – outra conclusão retiro – tratando-se de uma faculdade, não terão os operadores económicos que justificar a não aceitação da cessão.
Como vimos, o desiderato da norma é garantir um operador económico para a execução do “resto” de um contrato que o cocontratante inicial incumpriu. O que falta executar o legislador considera um novo contrato. Aproveitar os concorrentes do procedimento pré-contratual anterior e a proposta do adjudicatário. É de natureza subjetiva a modificação, a esta se circunscreve a previsão do art.º 318.º-A. Assim, nem por factos ocorridos no decorrer do contrato objeto da cessão será viável aplicar o regime do reequilíbrio financeiro para subsistência do contrato, à luz das modificações objetivas. A solução, neste caso, será a realização de novo procedimento adjudicatório. (7)
Por tudo isso, os riscos envolvidos são consideráveis, incompatível com a ideia de vinculação, a merecerem uma ponderação casuística. De um lado os operadores económicos podem não ter capacidade para executar o contrato nos termos firmados pelo cocontratante; (8) por parte do contraente público a existência fundamentos credíveis de que a cessão culminaria no incumprimento do contrato. (9)
Diria então, em resposta às questões que deixei em aberto, que pode o contraente público optar pela resolução em detrimento da cessão. Não podem os concorrentes reclamarem o direito à cessão (quando a opção seja a resolução) e podem renunciar à cessão quando interpelados.
Em suma, acompanho a posição do Dr. Marco Caldeira, que alicerçado em argumentos sobejamente convincentes, considera que a cessão prevista no art.º 318.º-A do CCP é voluntária para o cessionário. (10)
Acrescentaria apenas que uma interpretação com pendor diferente, além de não caber no art.º 318.º-A do CCP, afronta, designadamente, os princípios da justiça e da razoabilidade, e da proporcionalidade, nos termos do art.º 8.º do CPA e art.º 1.º-A do CCP. Seria voltar a uma França distante, aos poderes exorbitantes de 1902. (11) O art.º 318.º-A é uma norma excecional, exige rigor na sua interpretação e aplicação.
Para finalizar mais algumas reflexões num contexto mais geral.
O n.º 2, in fine, do art.º 318.º-A do CCP, dispõe “…novo contrato para a adjudicação da conclusão dos trabalhos.”. A expressão “trabalhos” é terminologia associada a empreitadas de obras públicas. Porém, o art.º 72.º, da Diretiva 2014/24/UE, consente obras, serviços ou fornecimentos.
Caducando a adjudicação no procedimento adjudicatório, nos casos do art.º 86.º, art.º 91.º e art.º 105.º, todos do CCP, sendo adjudicada a proposta ordenada no lugar subsequente, pode mais tarde, ao abrigo do art.º 318.º-A, o concorrente cuja proposta foi preterida ser interpelado para efeitos da cessão. A resposta parece perentória: Não. Mas, não tendo o respetivo operador económico sido objeto ainda da sanção de proibição de participação, nos termos do art.º 460.º do CCP, por infração da alínea b) do art.º 456.º e alínea a) e b) do art.º 457.º, ambos do CCP, a posição a tomar poderá não ser assim tão evidente quanto à participação do concorrente na nova relação contratual.
Se estiverem empatadas as propostas dos concorrentes (face à ordenação nos últimos lugares e porque as peças do procedimento, indevidamente, não previram regras de desempate, por esse facto o júri, os concorrentes e o órgão competente para a decisão de contratar desconsideraram) é interpelado o seguinte, para efeitos da cessão nos termos do art.º 318.º-A do CCP, ou realiza-se um procedimento de desempate.
Como se vê poderá não ser fácil diante de casos concretos. Verifico que várias entidades adjudicantes contemplam nos cadernos de encargos, dos respetivos procedimentos adjudicatórios, cláusulas relativas à cessão da posição contratual por incumprimento do cocontratante. Todavia, em alguns casos, limitam-se a fazer uma remissão para o art.º 318.º-A do CCP. É insuficiente. Devem detalhar de forma clara e precisa o seu âmbito de aplicação, de forma a poder aplicar-se num ambiente de transparência e igualdade. No fundo, torná-la exequível.
______________________
(1) Este último aspeto não é despiciendo, merece ponderação, pois a norma visa salvaguardar o interesse público e é nitidamente desequilibrada para o lado do cessionário. O ambiente não é de justiça contratual.
(2) E sabe-se que a averiguação da idoneidade do preço, a análise da justificação dada pelos concorrentes (ao abrigo da discricionariedade do júri), é algo – permitam-me o gracejo – que em muitos casos é do domínio da religiosidade, da fé – basta ser crente. Ninguém vai à fábrica verificar a modernidade do equipamento e a capacidade do mesmo para produzir mais barato.
Neste contexto, de um peso excessivo sobre o cessionário, como encarar o disposto no artigo 281.º do CCP: “O contraente público não pode assumir direitos ou obrigações manifestamente desproporcionados (…)“.
(3) Se assim não for, a capacidade do operador económico (cessionário) para executar o que resta do contrato (novo ?) e o risco de incumprimento, são dúvidas que pairam e não devem ser ignoradas. Suscita a indagação de um outro cenário: a possibilidade do contraente público desvincular-se do dever de interpelar os concorrentes para efeitos da cessão; e também, até que ponto existe um direito ao exercício da cessão pelos concorrentes. Colocando o problema de uma outra forma: Pode o contraente público abdicar da cessão e optar pela resolução? Podem os concorrentes reclamarem o direito à cessão? Note-se que o interesse contratual pode existir e ser relevante para os concorrentes (cessionários), por exemplo, mediante a oportunidade de pegar num contrato volumoso numa fase ainda inicial.
(4) Tudo depois de realizado o procedimento administrativo tendente à verificação dos pressupostos da resolução do contrato por incumprimento.
(5) Cf. Marco Caldeira “Artigo 318.º-A”, texto publicado no Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP, disponível no endereço: https://contratospublicos.net/2018/11/25/artigo-318-o-a/
(6) No sentido da necessidade de aceitação inclina-se igualmente Pedro Leite Alves. (Cf. “Alguns problemas em sede de execução e (in)cumprimento do contrato”, in Comentários à Revisão do Código dos Contratos Públicos, 2.ª Edição, 2018 – AAFDL Editora.
(7) Sublinhe-se que apesar da ligação ao contrato inicial – na perspetiva do objeto do “novo contrato” consistir num pedaço do que falta executar – existe uma nova relação contratual, cujas prestações contratuais serão executadas num cenário diferente das condições iniciais fixadas no caderno de encargos e insuscetível de se ter refletido na proposta do cocontratante e restantes concorrentes (mesmo estando prevista a cessão, pois em rigor não se sabe antecipadamente quando pode ocorrer), juntando-se-lhe uma modificação no conjunto algo de novo e substancial emerge e que necessariamente terá que ser submetido à concorrência do mercado, no respeito pelos princípios da concorrência, transparência, igualdade de tratamento e da não-discriminação.
(8) A inexistência de condições poderá ser um fator condicionador à aplicação do art.º 318.º-A (Cf. Pedro Matias Pereira, “Modificação subjetiva, pagamentos diretos a subcontratados e resolução do contrato: novidades do CCP revisto”, Revista de Contratos Públicos, N.º 17, abril de 2018, pp. 32.
Ou ainda, na minha opinião, decorrente de impossibilidade, por via dos impedimentos nos termos do art.º 55.º do CCP. E, também, porque em termos económicos pode não interessar ao concorrente.
(9) Motivações similares ao vertido no art.º 324.º do CCP, embora serão razões de interesse público que ditarão a decisão a proferir.
(10) Cf. Marco Caldeira “Artigo 318.º-A”, texto publicado no Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP, disponível no endereço: https://contratospublicos.net/2018/11/25/artigo-318-o-a/
A mesma opinião é perfilhada por Pedro Matias Pereira, “Modificação subjetiva, pagamentos diretos a subcontratados e resolução do contrato: novidades do CCP revisto”, Revista de Contratos Públicos, N.º 17, abril de 2018, pp. 31 e pp. 33, ponto 2.3. e ponto 2.3.2.
(11) Recordando o que se passou em França, onde unilateralmente um tribunal superior admitiu pela primeira vez o poder unilateral de modificação do contrato em benefício da administração, numa situação que envolveu a alteração do objeto do contrato de forma insustentável para o contraente privado. (Cf. Conseil d’Etat, 10 janvier 1902, n.º 94624) – http://www.conseil-etat.fr/Decisions-Avis-Publications/Decisions/Les-decisions-les-plus-importantes-du-Conseil-d-Etat/10-janvier-1902-Compagnie-nouvelle-du-gaz-de-Deville-les-Rouen
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A previsão adequada nas peças do procedimento é fundamental. Para evitar (ou minimizar) o desequilíbrio que comprometa a execução das prestações da nova relação contratual, definir, por exemplo, que a cessão só será opção à resolução do contrato até ao 1/3 da duração deste. Outra solução, para dar exequibilidade ao art.º 318.º-A, quando o procedimento seja por lotes e em que foi fixado um número máximo de lotes a adjudicar por concorrente, estabelecer nas peças do procedimento (caderno de encargos) que o concorrente a quem foi adjudicado o número máximo de lotes previstos pode ser interpelado, nos termos do art.º 318.º-A, para efeitos da cessão da posição contratual, relativamente aos restantes lotes em que participou e em que a respetiva proposta foi ordenada para efeitos de adjudicação.
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