O novo artigo 318.º-A do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) – que prevê a cessão de posição contratual, em caso de incumprimento grave pelo co-contratante, ao operador económico que tenha participado no anterior procedimento pré-contratual e cuja proposta tenha ficado ordenada no lugar imediatamente subsequente – suscita diversos problemas.

Não é objectivo deste post tratá-los aqui, até porque boa parte já foi (pelo menos) aflorada pela doutrina, destacando aqui, naturalmente, os textos de Paulo Otero (“Incumprimento e cessão da posição contratual: alguns problemas decorrentes do novo artigo 318.º-A do CCP”, in Revista de Contratos Públicos, n.º 16, Março de 2018, páginas 5 a 15), Miguel Lorena Brito (“A modificação subjectiva do contrato no Código dos Contratos Públicos revisto”, in AA.VV., Comentários à revisão do Código dos Contratos Públicos, 2.ª edição, AAFDL, Lisboa, 2018, páginas 1206 a 1210) e de Pedro Leite Alves (“Alguns problemas em sede de execução e (in)cumprimento do contrato”, in AA.VV., Comentários à revisão do Código dos Contratos Públicos, 2.ª edição, AAFDL, Lisboa, 2018, páginas 1217 e seguintes).

Naturalmente que os textos acima referidos – o primeiro, mais esquemático e problematizante, e o último mais crítico – não esgotam a análise que se impõe às múltiplas questões levantadas por este inovador mecanismo legal – espera-se ter oportunidade de voltar a algumas delas num outro post.

Uma dessas questões, que motiva este post, é a de saber se essa cessão de posição contratual é obrigatória e imperativa para o concorrente cuja proposta tenha ficado em segundo lugar e que seja designado pelo contraente público.

A minha perplexidade perante a mera colocação da questão – que, ainda há dias, foi objecto de amplo debate numa conferência – conduziu-me a abordar o tema desde já, para referir que, em minha opinião, não pode haver a mínima dúvida de que essa cessão é, só pode ser, voluntária para o cessionário.

O cedente, parece, de facto não tem hipótese de se opor à cessão, que lhe é apresentada como uma medida do contraente público no âmbito da execução do contrato, em alternativa à sua resolução – restando-lhe o recurso às vias de impugnação administrativa e judicial ao seu dispor.

Agora, para o (potencial) cessionário, a cessão não pode ser senão voluntária.

É certo que o termo “interpelação” no n.º 2 não é totalmente inequívoco, e que o n.º 4 do mesmo preceito também não ajuda, ao prever que “[a] cessão da posição contratual opera por mero efeito de ato do contraente público, sendo eficaz a partir da data por este indicada”.

Mas, apesar da imprecisão do legislador – tanto mais indesejável quanto estamos perante mecanismos com o impacto que este tem –, afigura-se que a conclusão não pode ser esta: a de que a cessão é voluntária para o cessionário.

Por um lado, o artigo 318.º-A, n.º 2, ao dispor que “[o] contraente público interpela, gradual e sequencialmente, os concorrentes que participaram no procedimento pré -contratual original, de acordo com a respetiva classificação final (…)”, tem claramente subjacente a possibilidade de recusa por parte dos concorrentes abordados, quando prevê que há uma interpelação “gradual e sequencial”: ora, esta previsão só faz sentido na hipótese de os concorrentes que foram primeiramente interpelados poderem recusar, pois só nesse caso se torna necessário o contraente público interpelar sequencialmente os demais concorrentes.

Por outro lado, se a cessão fosse imperativa (e a interpelação gradual estivesse reservada para casos de impossibilidade, v.g., para os casos de extinção do concorrente), o legislador teria de tê-lo dito de forma expressa.

Acresce que o n.º 6 esclarece que “[a]s obrigações assumidas pelo cocontratante depois da notificação (…) apenas vinculam a entidade cessionária quando este assim o declare, após a cessão”.

Adicionalmente, repare-se que os concorrentes só estão vinculados à celebrar contrato nos termos da proposta apresentada enquanto perdurar o respectivo prazo de manutenção, podendo desvincular-se dela se a adjudicação for proferida após esse prazo (cf. artigos 65.º e 76.º, n.º 3 do CCP). Ora, se assim é, relativamente à sua própria proposta, por maioria de razão isso terá de ser assim quando se sabe que o que o artigo 318.º-A, n.º 3 prevê não é a celebração do contrato nos termos da proposta apresentada por cada concorrente, mas sim da proposta apresentada pelo adjudicatário original (e que ascendeu à posição de co-contratante).

Seria estranho, de resto, que a entidade adjudicante não pudesse obrigar o adjudicatário original a celebrar o contrato sem ter de recorrer aos Tribunais*  e depois, em fase de execução, pudesse autoritária e unilateralmente impor o contrato a quem nem sequer foi adjudicatário.

Por fim, note-se que o artigo 318.º-A do CCP nem sequer constitui uma base legal directamente habilitante para a cessão da posição contratual, permitindo apenas que a entidade adjudicante / contraente público possa prever a adopção de tal mecanismo. Ao dispor que “[o] contrato pode prever que, em caso de incumprimento, pelo cocontratante, das suas obrigações, que reúna os pressupostos para a resolução do contrato, o cocontratante ceda a sua posição contratual ao concorrente do procedimento pré-contratual”, o legislador está, também aqui, a reconhecer que, para o cessionário, a cessão só pode ser voluntária, pois o contrato celebrado entre o contraente público e o co-contratante não pode impor obrigações a terceiros, que não são parte na relação contratual. Assim, não estando directamente vinculado pela lei a aceitar a cessão, nem estando abrangido por qualquer obrigação contratual nesse sentido, não há fundamento para considerar que os concorrentes no procedimento pré-contratual antecedente estão obrigados a aceitar a cessão: nem a lei é, nem o contrato poderia ser, fonte dessa obrigatoriedade**.

Em suma: à luz da lei, não se vê argumento suficientemente ponderoso para poder concluir que ali se prevê uma cessão de posição contratual “forçada” (para o cessionário); e, se tivesse sido essa a opção do legislador, sempre estaríamos perante um regime inconstitucional. De facto, à luz da liberdade de iniciativa económica e do direito de propriedade privada (cf. artigos 61.º e 62.º da Constituição), não pode um operador económico ser obrigado a celebrar um contrato com um contraente público, nos termos de uma proposta que não é a sua e já depois de expirado o prazo de manutenção das propostas.

O nome disso não é “cessão da posição contratual”, mas sim requisição civil

 

* Refira-se que o artigo 105.º, n.º 4 do CCP apenas prevê a “execução específica” por parte do adjudicatário, e não por parte do contraente público. No entanto, já tem sido admitido que tal não exclui que também este último possa recorrer aos Tribunais, nos termos gerais, para obter a condenação do adjudicatário na outorga do contrato.

** Pode sempre dizer-se, claro, que, apesar de o legislador só dizer que este mecanismo pode ser previsto no contrato, na verdade o contrato não poderia regular ex novo esta matéria e que a mesma sempre teria de vir previamente disciplinada nas peças procedimentais; e que estas peças poderiam prever a aceitação, por todos os concorrentes, da cessão que viesse a ser decidida em sede contratual.

Mesmo admitindo (a benefício do raciocínio) que as peças do procedimento pudessem, por exemplo, indicar como documento das propostas a aceitação, por cada concorrente, da futura cessão que viesse a ser operada a seu favor – e assumindo que os operadores económicos estariam dispostos a correr esse risco, já que a cessão destinar-se-ia a executar um contrato nos termos da proposta de outro concorrente –, ainda assim sempre poderia dizer-se que, nesse caso, a cessão não é obrigatória. Ela carecia de prévio e expresso consentimento pelos concorrentes – simplesmente, no caso, esse consentimento terá sido dado a título de concretização eventual e de forma antecipada, durante o próprio procedimento pré-contratual, e não apenas em sede de execução do contrato, perante uma situação de incumprimento concretamente verificada.