Ainda a propósito da determinação do âmbito da obrigação de nomeação de um gestor do contrato, pode equacionar-se se essa obrigação existe mesmo nos contratos celebrados através de ajuste directo simplificado. O principal argumento que pode ser invocado neste sentido – e já foi invocado, desde logo na conferência realizada no dia 23 de Janeiro, na Torre do Tombo – encontra-se no n.º 3 do artigo 128.º do CCP, que dispõe que o ajuste directo simplificado “está dispensado de quaisquer outras formalidades previstas no presente Código (…)”. De acordo com esta perspectiva, se o gestor do contrato tem necessariamente de ser nomeado durante o procedimento [a ponto de a sua identidade dever constar do clausulado do contrato: cf. artigo 96.º, n.º 1, alínea i) do CCP], esta dispensa de “quaisquer outras formalidades” procedimentais abrangeria também a obrigação de nomeação do gestor.

Embora reconheça que o argumento é engenhoso e que a conclusão alcançada é consentânea com o que a lei deveria ser, tenho confessadas dúvidas de que corresponda ao que o regime é.

Na verdade, julgo que o artigo 128.º, n.º 3 do CCP, ao dispensar “quaisquer outras formalidades” para a celebração do contrato, está a pensar numa série de outras coisas: dispensa de envio de convite formal, de repto à “melhoria” da proposta, do envio dos documentos de habilitação, etc.. O legislador não estava, seguramente, a pensar na dispensa de nomeação do gestor do contrato, até porque a Parte II do CCP é totalmente omissa na regulação deste procedimento (quem nomeia, quando ocorre a nomeação, quem pode ser nomeado). A única alusão ao gestor do contrato na Parte II surge, precisamente, na necessidade de a sua identificação constar do clausulado do contrato, mas o legislador não disciplina minimamente o procedimento de nomeação do gestor, pelo que só muito forçadamente poderá ver-se na dispensa de “quaisquer outras formalidades” a que se refere o artigo 128.º, n.º 3 do CCP a dispensa de uma formalidade que o legislador só prevê de forma indirecta e cujo regime tem de encontrar-se, por construção interpretativa, noutros regimes, como o do CPA. Ou seja, está em causa a dispensa das formalidades previstas no próprio CCP, não aquelas que se têm por meramente pressupostas ou implícitas. De resto, tendo em conta o valor máximo dos contratos que podem ser celebrados por ajuste directo simplificado (cf. artigo 128.º, n.º 1), tais contratos não são, sequer, obrigatoriamente reduzidos a escrito [cf. artigo 95.º, n.º 1, alíneas a) e d) do CCP], pelo que, também por isso, o apelo à identificação do gestor no clausulado, prevista no artigo 96.º, prova demais.

Por outro lado, o artigo 290.º-A do CCP, além de (criticavelmente, em minha opinião) não estabelecer qualquer diferenciação consoante o procedimento pré-contratual adoptado – ou seja, impõe a presença de um gestor em todos os contratos, independentemente de terem sido celebrados por ajuste directo, consulta prévia, concurso público ou qualquer outro procedimento –, também não se encontra (o artigo 290.º-A do CCP) na Parte II. Ou seja, é difícil pretender que a dispensa de “formalidades” (que me parece só poderem ser procedimentais) implica, afinal, a alteração de um aspecto que diz respeito ao regime substantivo (de execução) do contrato.

Note-se que não se trata de um aspecto de somenos, de inserção sistemática das normas (o artigo 128.º, n.º 3 do CCP parecer referir-se às obrigações procedimentais previstas na Parte II do Código e o artigo 290.º-A se encontrar na Parte III): é que a atribuição de um alcance tão amplo à dispensa de “quaisquer outras formalidades” tem consequências mais vastas e conduz a resultados imprevistos e certamente indesejados, sobretudo num contexto em que o ajuste directo simplificado, hoje, também já permite a celebração de contratos de empreitada de obras públicas, ainda que de valor relativamente reduzido (até € 10.000).

Um exemplo (que, porventura, não será o mais feliz ou inteiramente rigoroso, mas que permite ilustrar minimamente o ponto): o artigo 352.º prevê que, antes da celebração do contrato de empreitada, o dono da obra deve estar na posse administrativa da totalidade dos terrenos a expropriar (n.os 1 e 2), sendo que as servidões necessárias à execução de trabalhos preparatórios ou acessórios e ao início da execução da obra também devem ser constituídas antes da celebração do contrato (n.º 3). Trata-se, portanto, de obrigações que, não sendo procedimentais nem estando especificamente reguladas na Parte II do Código, têm de ser cumpridas pela entidade adjudicante na pendência do procedimento pré-contratual (assumindo que não foram cumpridas até em momento anterior à abertura do procedimento): será que a dispensa de formalidades prevista no artigo 128.º, n.º 3 também abrangeria estas obrigações? Afigura-se relativamente pacífico que não. Mas, então, de acordo com a perspectiva aqui abordada, qual o critério para distinguir os aspectos da execução do contrato previstos na Parte III, e que pressupõem a adopção de determinadas formalidades anteriormente à celebração do contrato, que podem ter-se por afastadas no âmbito do ajuste directo simplificado?

Em suma, pese a impropriedade do exemplo encontrado para ilustrar uma das possíveis consequências de uma leitura tão ampla do artigo 128.º, n.º 3 do CCP (haverá seguramente outros, e mais felizes), julgo que os argumentos acima apresentados permitem, pelo menos, pôr em causa a ideia de que a adopção do ajuste directo simplificado, na celebração do contrato, dispensa a existência de um gestor do contrato que acompanhe e vigie a respectiva execução. Essa seria, provavelmente, a melhor solução a consagrar pelo legislador no futuro; mas, salvo o devido respeito, parece-me altamente discutível que, bem ou mal, seja essa a solução legal que vigora no presente.