No meu post anterior, discordei do entendimento do IMPIC quanto à qualificação do ajuste directo simplificado previsto no artigo 2.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, como um ajuste directo adoptado em função de critérios materiais (cf. questão 5, página 7, da Orientação 06/CCP/2020, de 12 de Abril).
Na verdade, quando no n.º 2 daquele artigo começa por se ressalvar “Sem prejuízo do disposto no número anterior”, interpreto esta ressalva no seguinte sentido: sem prejuízo de o n.º 1 habilitar a adopção do ajuste directo com fundamento no critério material previsto no artigo 24.º, n.º 1, alínea c) do CCP, para a celebração de contratos de qualquer valor, as entidades adjudicantes podem também adoptar o ajuste directo simplificado, sem invocar qualquer critério material mas, em contrapartida, “só” até ao limite de € 20.000 (que é “só” o quádruplo do valor máximo do ajuste directo simplificado no CCP).
Parece-me ser este o sentido da norma, e não o de transformar o ajuste directo simplificado num ajuste directo por critérios materiais, ao fazer “uma referência indireta a esse critério” (?). E também não me parece decisiva a remissão apenas para os números 1 e 3 do artigo 128.º do CCP (sem menção ao n.º 2), por dois motivos: por um lado, porque o que o legislador quer assegurar é (i) a possibilidade de adopção do ajuste directo simplificado e (ii) a dispensa de formalidades, que é o que se encontra previsto naqueles números; por outro lado, porque, faz pouco sentido continuar a pretender que está aqui em causa a “escolha do ajuste direto nos termos do disposto na alínea d) do artigo 19.º e na alínea d) do n.º 1 do artigo 20.º” do CCP – quando o artigo 19.º se refere a empreitadas (que o Decreto-Lei n.º 10-A/2020 não permite que sejam contratadas através de ajuste directo simplificado) e quando o artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do CCP só permite a adopção do ajuste directo para a celebração de contratos de aquisição de bens ou serviços de valor inferior a € 20.000, sendo que o Decreto-Lei n.º 10-A/2020 permite a adopção do ajuste directo simplificado para a celebração de contratos cujo valor não seja superior aos mesmos € 20.000 (ou seja, podendo ser igual a € 20.000).
Por tudo isto, não concordo que estejamos perante um procedimento adoptado ao abrigo de critérios materiais.
Mas, se isto é assim quanto ao ajuste directo simplificado previsto no artigo 2.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, já o mesmo parece não poder ser dito quanto ao novo ajuste directo simplificado agora aditado a este diploma pelo Decreto-Lei n.º 18/2020, de 23 de Abril.
Com efeito, o artigo 2.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 prevê que “[p]ode ser, excecionalmente, adotado, na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa, devidamente fundamentada, e independentemente do preço contratual e até ao limite do cabimento orçamental, o regime do procedimento de ajuste direto simplificado previsto no artigo 128.º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual, para a celebração de contratos cujo objeto consista na aquisição de equipamentos, bens e serviços necessários à prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, ou com estas relacionados” (n.º 1), sendo que “[a]s circunstâncias invocadas para fundamentar a urgência imperiosa, (…) não podem, em caso algum, ser imputáveis à entidade adjudicante” (n.º 3). Prevendo-se ainda que, até 60 dias após o período de vigência deste diploma, a Direção-Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, I.P., o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, I.P., e a Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E. devem elaborar um relatório conjunto “sobre todas as adjudicações e respetiva fundamentação e circunstancialismo, designadamente justificando a impossibilidade ou grave inconveniência do recurso a outro tipo de procedimento” (n.º 6). Ou seja, aqui sim, temos um procedimento formalmente qualificado como “ajuste directo simplificado” mas que, materialmente, tem de ser justificado com base em motivos de urgência imperiosa não imputáveis à entidade adjudicante, e também por isso é independente do valor.
Confesso que não aprecio particularmente a técnica legislativa adoptada: o ajuste directo simplificado é, estruturalmente, um procedimento adoptado em função do critério do valor, sendo que é justamente o facto de o valor do contrato a celebrar ser relativamente diminuto (na óptica do legislador) que permite a mera “adjudicação sobre factura”. Prever um ajuste directo simplificado até 20.000 mas depois exigir que, afinal, seja fundamentada a urgência imperiosa não imputável à entidade adjudicante é dizer que o ajuste directo previsto no artigo 24.º, n.º 1, alínea c) do CCP pode ser adoptado com dispensa de quaisquer formalidades e traduzir-se numa “adjudicação sobre factura”. Ou seja, dito de outro modo: parece-me que, na pureza dos princípios, em termos de técnica legislativa, para se chegar ao mesmo resultado prático, o que se deveria ter feito era simplificar a tramitação do ajuste directo com fundamento em critérios materiais, e não tornar mais complexo o ajuste directo simplificado (que, repito, na lógica do CCP, é sempre em função do valor), exigindo, também aqui, critérios materiais.
Para mais, uma vez que o novo artigo 2.º-A não substitui o artigo 2.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, antes o complementa, cria-se uma multiplicidade de regimes cujo racional é algo difícil de compreender: de um lado, temos um ajuste directo simplificado que permite a celebração de contratos de valor até € 20.000 (o do artigo 2.º, n.º 2); de outro, temos o ajuste directo simplificado que permite a celebração de contratos de qualquer valor, com fundamento em motivos de urgência imperiosa (o do novo artigo 2.º-A); e, por fim, continuamos a ter o ajuste directo “normal” com fundamento em motivos de urgência imperiosa (artigo 2.º, n.º 1), que, apesar de não ter sido formalmente revogado, na prática vai, provavelmente, deixar de ser adoptado, já que, a ter de justificar a existência de uma urgência imperiosa, será sempre preferível seguir o novo ajuste directo simplificado do que o “normal”.
É verdade que o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 18/2020 justifica esta solução com a circunstância de “os fornecedores disponíveis assum[ir]em não ter condições para respeitar as formalidades próprias de qualquer procedimento (como sejam a entrega dos documentos de habilitação ou a redação de documentos em língua portuguesa)”; mas receio bem que a explicação do regime se encontre, tão-somente, no artigo 3.º deste diploma, que faz retroagir a produção dos seus efeitos a 13 de Março (n.º 1) e dispõe que os procedimentos promovidos antes da publicação deste diploma e que não tenham observado, no todo ou em parte, o regime previsto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10 -A/2020 consideram-se realizados, para todos os efeitos, ao abrigo do regime previsto no novo artigo 2.º-A, agora aditado (n.º 2). Há, pois, assumidamente, a intenção de “legalização” retroactiva dos procedimentos que, no último mês e meio, foram adoptados fora do quadro legal – o que, convenhamos, não será a motivação mais nobre para a criação desta figura “híbrida” ou ad hoc do ajuste directo simplificado com fundamento em critérios materiais.
Resta saber se uma solução destas será conforme à Constituição – recordo que, a propósito de um regime semelhante aprovado há mais de uma década (o Decreto-Lei n.º 34/2009, de 6 de Fevereiro), não faltaram Autores a defender a sua inconstitucionalidade, (também) por este motivo.
Isso, porém, seria toda uma outra discussão…
Parabéns pela análise profícua e ponderada. Pelas suas palavras deduzo que o Sr. Professor, com uma grande bondade – apesar da crítica cabal – continua o raggiungimento dell’obiettivo do CCP, mas agora aplicado a mais um regime especial no «ordenamento» pandémico.
Se me permite, diria que o legislador, no novel ajuste direto simplificado por critério material criou um novo procedimento adjudicatório, que não é uma simbiose mas uma verdadeira quimera jurídica (como tão bem referiu, quanto à contradição de se complicar o «simplificado»).
Não se trata de um verdadeiro ajuste direto geral, e muito menos simplificado.
Salvo a idiotice da nomenclatura, seria um ajuste direto geral simplificado.
Mas o legislador amigo manda aplicar a este procedimento quimera o regime do CCP, pelo menos parcialmente; estamos perante a violação do princípio da tipicidade procedimental por via legislativa.
Mais uma vez os parabéns e um abraço.
L
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