Tenho toda a simpatia e respeito institucional pelo IMPIC: num artigo recente, defendi mesmo (na esteira do seu anterior presidente, Fernando Silva) que o IMPIC deveria efectivamente assumir-se como o verdadeiro regulador da contratação pública [“Regulação dos mercados públicos”, in AA.VV., Garantia de Direitos e Regulação: Perspectivas de Direito Administrativo (coord. Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro, Rute Saraiva e Fernanda Maçãs), AAFDL, Lisboa, 2020, páginas 779 a 815]. E tenho, além do mais, estima por todos quantos lá trabalham, alguns dos quais tenho o prazer de conhecer pessoalmente. Fica assim feita a “declaração de interesses”.

Mas, também por isso (e não: apesar disso), julgo que, por vezes, o IMPIC nem sempre é muito feliz no exercício desta função “reguladora”, nomeadamente quando, a pretexto da interpretação da lei, se aventura desnecessariamente em leituras discutíveis e, quiçá, contraproducentes.

Não estou agora a pensar na questão da sua (eventual in)competência para emitir as sucessivas “orientações técnicas” que tem vindo a elaborar – conforme é defendido, nomeadamente, por Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, Volume I, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, páginas 69 e 70.

Estou a pensar, sim, na questão de fundo, isto é, na bondade das posições assumidas nessas “orientações técnicas”, as quais, infelizmente, muitas vezes só “desorientam”: lembre-se o exemplo infeliz da Orientação Técnica 01/CCP/2018, onde se defendeu que, em 2018, as entidades adjudicantes deveriam considerar o “histórico” das consultas prévias e ajustes directos adoptados em 2016 e 2017… quando, evidentemente, nesses anos não existia, ainda, na lei o procedimento da consulta prévia (o que depois motivou um “esclarecimento”, no sentido de que “durante este período transitório de 2018 e 2019, sempre que não for possível cumprir a orientação aí vertida, podem não ser contabilizados os contratos celebrados em 2017 e 2016”, o que ainda terá deixado, presumivelmente, as entidades adjudicantes mais confusas do que já estavam).

Vem isto a propósito da recente Orientação Técnica 06/CCP/2020, na qual me parece que o IMPIC, embora com boas intenções (que não se negam), talvez tenha acabado por ir longe demais no seu voluntarismo. Isto é, tentando auxiliar as entidades adjudicantes a aplicar o regime legal – melhor, os sucessivos regimes legais que se têm sucedido – em matéria de contratação pública relacionada com a COVID-19, o IMPIC ensaia, a meu ver, algumas leituras discutíveis e, nalguns casos, parece-me mesmo que incorre em alguns equívocos.

Sem ser exaustivo, diria:

Questão 1 (páginas 2 e 3 da Orientação): julgo ser altamente discutível que o âmbito dos contratos que é possível celebrar ao abrigo do regime excepcional do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 deva ser recortado em moldes tão restritivos como os que o IMPIC aponta; e estou curioso para saber como, na prática, esse critério redutor irá aplicar-se aos contratos destinados “à reposição da normalidade” na sequência da pandemia.

Questão 2 (páginas 3 e 4): apesar de se saber que a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10-E/2020 ao âmbito subjectivo de aplicação do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 foi motivada por algumas vozes doutrinárias que defenderam, e bem, a inclusão das IPSS, não é rigoroso afirmar-se que todas as IPSS são, sempre e necessariamente, “organismos de direito público”, sujeitas ao CCP (cf., a este propósito, e passe a publicidade, José Duarte Coimbra, Tiago Serrão e Marco Caldeira, Direito Administrativo da Emergência – Organização Administrativa, Procedimento Administrativo, Contratação Pública e Processo Administrativo na resposta à COVID-19, Almedina, Coimbra, 2020, páginas 95 a 97).

Questão 3 (página 4): uma vez que o artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei 10-A/2020 afasta expressamente a aplicação do disposto no artigo 27.º-A do CCP, não vejo utilidade em insistir para que, sempre que possível, sejam convidadas a apresentar proposta, pelo menos, três entidades (o que mais não é do que querer aplicar uma norma que a lei afastou); e, sobretudo, não vejo fundamento para defender o dever de fundamentação no caso de não se proceder a esse convite (o que mais não é do que dizer que as entidades adjudicantes devem fundamentar por que motivo não cumpriram uma formalidade de que a lei as dispensou): num contexto de urgência, fará sentido pretender onerar as entidades adjudicantes com a carga burocrática inerente a justificações só para “cumprir calendário”?

Questão 5 (página 7): não concordo nada que o ajuste directo simplificado previsto no artigo 2.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 seja um ajuste directo em função de critérios materiais: este diploma limitou-se a aumentar o valor dos contratos que podem ser celebrados através deste procedimento (e é mesmo um procedimento, ou sub-procedimento, ao contrário do que se afirma na página 5), mas, seguramente, não o transformou num procedimento a ser adoptado em função de critérios materiais (o que seria muito incongruente – embora não totalmente incompatível – com a fixação de um valor e não “casaria” bem como o regime do n.º 1 do mesmo preceito).

Questão 6 (página 7): concordo, de iure condendo, com a proposta de desconsiderar doações para futuros ajustes directos e consultas prévias, mas duvido muito que, de iure condito, a mesma seja admissível: as consultas prévias e ajustes directos a adoptar após a cessação de vigência do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 reger-se-ão, pura e simplesmente, pelo artigo 113.º, n.º 5 do CCP, sendo que este regime nada diz sobre poderem ser convidadas a apresentar proposta entidades que tenham celebrado contratos gratuitos no contexto do estado de emergência; e, como o próprio IMPIC reconhece, a outro propósito (página 2), as normas excepcionais (como é a do artigo 113.º, n.º 5) devem ser interpretadas de forma restritiva…

Em meu entender, seria mais meritório o IMPIC sinalizar desde já este problema ao Governo e recomendar que o mesmo seja regulado no diploma que venha a determinar a cessação de vigência do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 do que procurar desde já avançar com interpretações generosas mas que carecem de respaldo suficientemente sólido na lei (e, a serem seguidas pelas entidades adjudicantes, poderão vir a gerar problemas de litigância no futuro).

Questão 8 (páginas 8 e 9): aqui, pelo contrário, o IMPIC limita-se a reproduzir a lei no que diz respeito à possibilidade de dispensa da apresentação dos documentos de habilitação pelo adjudicatário e de dispensa da prestação da caução, quando, porventura, seria legítimo esperar que o regulador da contratação pública fosse um pouco mais além da letra da lei e aconselhasse, num modo de “boas práticas”, que os documentos de habilitação continuassem a ser exigidos (mesmo que o contrato pudesse começar desde logo a ser executado), de modo a que a entidade adjudicante tenha forma de controlar se o adjudicatário está ou não abrangido por algum impedimento (recorde-se, aliás, o oportuno alerta do Professor Miguel Assis Raimundo em post anterior, de 27 de Março). Aqui sim, é que um regulador poderia e deveria fazer a diferença ao apontar um caminho de boa gestão às entidades adjudicantes. Veja-se, por exemplo, o papel mais “pedagógico” que a Comissão Europeia assumiu na sua Orientação datada de 1 de Abril de 2020, procurando auxiliar as entidades adjudicantes a tirarem todo o partido dos diversos instrumentos legalmente previstos (ainda que também esta Orientação da Comissão não esteja isenta de críticas, diga-se… mas isso ficaria para outro post).

Não quero ser injusto ou excessivo: os tempos são adversos, os regimes são complexos – e mudam de hora a hora, assinalando-se que, por exemplo, o mesmo diploma (o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, justamente) chegou a ser objecto de duas alterações publicadas no Diário da República no mesmo dia (!) – e a urgência não favorece a reflexão ponderada. Mas, por isso mesmo, do “regulador” espera-se o distanciamento e serenidade que, muitas vezes, falta às entidades adjudicantes (sobretudo, as mais pequenas, menos experientes e menos bem apetrechadas), justamente para que possa “regular” a sua actividade.

Apesar das suas boas intenções e de alguns aspectos meritórios, a Orientação Técnica 06/CCP/2020 não foi, infelizmente, totalmente bem sucedida nos seus propósitos.