No passado dia 6 de Junho, foi publicada no Diário da República a Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, que aprovou o Programa de Estabilização Económica e Social.

Este Programa prevê, no seu ponto 5.2, sob a epígrafe “Contratação Pública e Tribunal de Contas”, a intenção de proceder à agilização dos procedimentos de contratação pública, evitando a paralisação do investimento em resultado de pesadas exigências burocráticas, demoradas impugnações judiciais ou outros constrangimentos legais desproporcionados, designadamente:

  • Aceleração de projectos co-financiados por fundos europeus (PT2020), bem como contratos celebrados nas áreas da habitação pública ou de custos controlados, da conservação e manutenção de imóveis, infra-estruturas e equipamentos;
  • Alteração dos limiares de aplicação da consulta prévia para os contratos de obras e de serviços;
  • Faculdade de a entidade adjudicante proceder a uma adjudicação excepcional acima do preço base, quando o concurso tenha ficado deserto;
  • Previsão de critérios de adjudicação relacionados com a sustentabilidade ambiental, com a inovação de processos, produtos ou materiais e a promoção de emprego científico ou qualificado;
  • Estímulo à contratação de proximidade, podendo as entidades adjudicantes promover a consideração de tais critérios nos procedimentos pré-contratuais que lancem;
  • Possibilidade de estabelecer uma reserva de participação em procedimento pré-contratual a micro, pequenas e médias empresas e a entidades das respectivas comunidades intermunicipais;
  • Possibilidade de o caderno de encargos incluir apenas um programa preliminar (em vez de um projecto de execução) em caso de recurso a um concurso de concepção-construção;
  • Fazer depender a citação das entidades adjudicantes demandadas em acções de contencioso pré-contratual de despacho liminar do juiz;
  • Dispensa do visto prévio do Tribunal de Contas para os procedimentos cujo valor dos contratos seja inferior a € 750.000.

Não questionando o papel que a contratação pública (e do investimento público, em geral) pode(m) ter na recuperação económica na sequência da crise provocada pela pandemia, e não pondo em causa a bondade das intenções subjacentes às medidas propostas, julgo, em qualquer caso, que algumas delas são, no mínimo, inócuas ou, noutros casos, altamente duvidosas.

Começando pelas primeiras: a “Previsão de critérios de adjudicação relacionados com a sustentabilidade ambiental, com a inovação de processos, produtos ou materiais e a promoção de emprego científico ou qualificado” já está consagrada na lei, sendo que a revisão de 2017 do Código dos Contratos Públicos – na sequência, aliás, das Directivas de 2014 – veio dar largo enfoque à sustentabilidade ambiental e à inovação. Provavelmente, o problema, aqui, não é da lei, mas sim da prática das entidades adjudicantes, que, pressionadas pelas limitações orçamentais, tendem a apostar sobretudo no preço; de resto, bem recentemente, um relatório do Tribunal de Contas veio justamente evidenciar quão insuficiente é ainda a incorporação de preocupações ambientais em matéria de contratação pública. A evolução para uma contratação pública mais sustentável é sempre de aplaudir, mas dificilmente será conseguida com uma mera alteração legislativa (sobretudo nesta fase, em que o principal parece já ter sido consagrado no artigo 75.º do CCP).

Quanto à “Possibilidade de o caderno de encargos incluir apenas um programa preliminar (em vez de um projeto de execução) em caso de recurso a um concurso de conceção-construção”, pergunto-me se os concursos de concepção-construção serão tão frequentes que justifiquem ex professo uma alteração do regime…

Uma nota, também, para as alterações do regime contencioso: percebe-se a ideia de “Fazer depender a citação das entidades adjudicantes demandadas em ações de contencioso pré-contratual de despacho liminar do juiz”; há quem o defenda na doutrina (eu também já acolhi esta ideia, num texto que, espero, será publicado em breve) e, sem dúvida, urge encontrar mecanismos que desincentivem o recurso à litigância apenas como forma de “ganhar tempo”. Ainda assim, além de notar o alcance relativamente limitado que se antevê quanto a esta alteração, sublinharia a particularidade de o legislador combater as “demoradas impugnações judiciais” com a imposição de maiores restrições à efectividade do direito de acção (a exemplo do que sucedeu na última revisão do CPTA, em Setembro de 2019, que restringiu significativamente o efeito suspensivo automático no contencioso pré-contratual); de investimentos sérios no reforço do quadro de juízes e nos meios técnicos e humanos ao dispor dos tribunais administrativos é que se ouve falar menos… e os novos juízos especializados em matéria de contratação pública, que se anunciam para Setembro deste ano, embora bem-vindos, não serão uma panaceia que curará todos os males.

Deixo para o fim as alterações que me parecem mais discutíveis.

Por um lado, a alteração dos limiares de aplicação da consulta prévia para os contratos de obras e de serviços – em completo contra-ciclo com a revisão de 2017 do CCP e que, juntamente com a dispensa do visto prévio do Tribunal de Contas para os contratos de valor inferior a € 750.000, poderá resultar numa combinação “explosiva”, no mau sentido. É certo que esta última medida terá sido sugerida pelo próprio Tribunal de Contas, cujas decisões nesta sede têm, não raro, sido alvo de acesas críticas e que só em pouco mais de metade dos casos (cerca de 63%) são proferidas dentro do prazo legal. Mais uma vez, porém, talvez se tenha enveredado pelo caminho mais fácil: se os tribunais não respondem em tempo útil, diria que a solução curial passaria por dotá-los de mais meios, e não por reduzir o seu âmbito de intervenção.

Por outro lado, a faculdade de a entidade adjudicante proceder a uma adjudicação excepcional acima do preço base, quando o concurso tenha ficado deserto – uma medida que não se vê muito bem como será vertida em lei, mas que, à partida, se antevê como particularmente perigosa, desvirtuando o racional subjacente ao artigo 24.º do CCP e “convidando” à utilização de “expedientes” como o lançamento de concursos com preço base artificialmente reduzido, como “antecâmara” da subsequente adopção do ajuste directo. Aguardemos para ver.

Por fim, o “Estímulo à contratação de proximidade, podendo as entidades adjudicantes promover a consideração de tais critérios nos procedimentos pré-contratuais que lancem”. Confesso a minha curiosidade em perceber como será concretizada esta ideia, já que a consideração do território, enquanto tal, se afigura como frontalmente contrária aos desígnios do Direito europeu: onde ficam as liberdades de circulação e as proibições de discriminação no meio disto? De que modo pode o mérito de uma proposta ser avaliado em função de um critério/factor como este? Prima facie, dir-se-ia estarmos perante um novo proteccionismo (pouco) “encapotado”… mas, mais uma vez, aguardemos.

Seja como for, independentemente das dúvidas ou reservas suscitadas, uma coisa parece certa: vêm aí (mais) mudanças na contratação pública, que muito teria a ganhar com uma maior estabilidade normativa (e consequente sedimentação jurisprudencial).