os objetivos principais da recentemente divulgada Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª são o de estabelecer um conjunto (nada despiciendo) de «medidas especiais» de contratação pública e o de promover alterações (algumas até bem significativas) ao Código dos Contratos Públicos. mas por aqui não se fica esta iniciativa legislativa governamental. a esse dois objetivos acrescem três cirúrgicas alterações ao regime das ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual: (i) o aditamento de dois novos números ao artigo 102.º do CPTA, consagradores de um fase de controlo – e despacho – liminar do juiz sobre as petições deste tipo de ações; (ii) a alteração ao atual n.º 3 do artigo 103.º-A, que tem o duplo alcance de encurtar os prazos de tramitação e de decisão do incidente de levantamento do efeito suspensivo automático e de restringir – melhor: suprimir – a possibilidade de realização de quaisquer diligências instrutórias nesse contexto; e (iii) a alteração ao atual n.º 4 do artigo 103.º-A, que modifica, desgraduando, o critério decisório desse incidente.
quando lidas em conjunto, e sobretudo quando lidas em articulação com as que a este propósito já tinham sido introduzidas pela última revisão do CPTA (através da Lei n.º 118/2019, de 17.09), não é difícil de revelar o sentido programático fundamental subjacente a estas alterações. se bem se compreende, visa-se com elas prosseguir o propósito de reequilibrar o sistema de tutela contenciosa pré-contratual urgente, quiçá demasiadamente desnivelado em favor dos impugnantes (e, consequentemente, em desfavor das entidades adjudicantes/adjudicatários) em 2015. a bondade e a oportunidade deste objetivo de política legislativa (assim como o conteúdo do juízo quanto ao «equilíbrio» ou «desequilíbrio» do sistema a partir de 2015) são seguramente suscetíveis de dissensão – como por definição ocorre em qualquer discussão que se situe nesse plano. fora de causa está, porém, embora não seja aqui o espaço para proceder a essa demonstração, que as medidas aprovadas em 2019 e as agora projetadas aprovar em 2020 neste domínio se situam perfeitamente dentro das baias concedidas pelas Diretivas «Recursos» aos legisladores dos Estados-Membros. deixam-se de seguida algumas observações preliminares quanto a cada uma delas.
1) despacho liminar
para além de expressamente sugerida pelas Diretivas «Recursos» (cfr. o considerando (12) da Diretiva 2007/66/CEE), a introdução de uma fase de controlo liminar nas ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual (equivalente à prevsita no âmbito das intimações para proteção de DLG’s e das providências cautelares) faz todo o sentido. dir-se-á mesmo que, a partir do momento em que a revisão de 2019 fez depender a produção do efeito suspensivo automático de pressupostos (objetivos e temporais) adicionais, essa fase se revela mesmo imprescindível. isto é assim na medida em que, ao contrário do que sucedia desde 2015, a produção desse efeito depende agora não apenas do facto de a ação ter um determinado objeto (a impugnação de atos de adjudicação), mas também de esse ato de adjudicação dizer respeito a certo tipo de procedimentos (simplificando: procedimentos conducentes à celebração de contratos de valor superior aos limiares das Diretivas) e de a ação ser proposta dentro de um certo prazo (simplifcando: dentro do prazo de standstill). ora, não parece que a verificação do preenchimento destes pressupostos pudesse continuar a passar exclusivamente pela secretaria do tribunal, no momento de promoção oficiosa da citação. a prática subsequente às alterações de 2019 revela aliás terem existido em alguns casos erros manifestos das secretarias, indicando nas citações de ações de contencioso pré-contratual a aplicabilidade do efeito suspensivo automático em situações em que, por falta de verificação dos pressupostos estabelecidos no artigo 103.º-A/1, a ele não havia efetivamente lugar. a mais-valia fundamental da introdução desta fase de controlo liminar é, por isso, e segundo se julga, esta: transferir para o juiz a responsabilidade de verificar se, in casu, há ou não lugar à produção do efeito suspensivo automático.
acrescem a esta mais-valia, está bem de ver, outras duas facilmente identificáveis: (i) a possibilidade de, nessa análise liminar, o juiz «despistar» ações que se revelem manifestamente infundadas ou inadmissíveis; (ii) a garantia de que o efeito suspensivo automático, embora decorrendo da lei, só se converte em efeito proibitivo sobre a esfera das entidades demandadas (e dos contrainteressados) em relação à execução do ato de adjudicação/celebração do contrato mediante um ato do tribunal – a citação.
da primeira, estima-se, não resultarão provavelmente grandes intervenções judiciais: a exigência de a improcedência ou inadmissibilidade terem de ser «manifestas» aponta, tal como sucede no domínio das providências cautelares (cfr. o artigo 116.º/2), para que venham a ser estatisticamente raros os casos em que o juiz rejeite liminarmente ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual. mas não se exclui que, mesmo com esse limitado alcance, esta faculdade não possa efetivamente vir a ser virtuosa, no sentido de obviar ao arrastamento de processos ab initio condenados ao fracasso, isto indepentemente de lhes estar ou não associado o efeito suspensivo automático sobre o ato de adjudicação (isto porque o alcance do artigo 102.º do CPTA é geral: aplica-se a qualquer ação de contencioso pré-contratual).
a segunda vem tornar claro – se preciso ainda fosse – que é efetivamente necessário um ato do tribunal para que se espolete o efeito suspensivo. como já muito boa literatura havia identificado, o paralelo do efeito suspensivo automático com o regime suspensivo consagrado no artigo 128.º já seria provavelmente suficiente para alcançar essa conclusão. em sendo aprovados os projetados aditamentos ao artigo 102.º, passará ela a ser inquestionável: até que as entidades adjudicantes/demandadas sejam citadas, e que dessa citação conste a advertência da produção do efeito suspensivo previsto no artigo 103.º-A/1, sobre elas não recai qualquer proibição de executar o ato de ajudicação impugnado/celebrar o correspondente contrato. mas na medida em que o despacho liminar do juiz (a partir de setembro, em Lisboa e no Porto, espera-se, um juiz de um juízo especializado de contratos públicos) tem de ser proferido no prazo de 48h e a citação é, por definição, urgente, daqui não parece vir a seguir-se qualquer “obstáculo real” à produção desse efeito proibitivo – conquanto, naturalmente, a ele haja lugar.
2) tramitação e decisão do incidente
a projetada alteração ao artigo 103.º-A/3 traduz-se: (i) na redução do prazo de resposta do autor (da ação) de 7 para 5 dias; (ii) na redução do prazo de decisão do incidente por parte do juiz de 10 para 7 dias; e (iii) na proibição de, nesse contexto, serem levadas a cabo quaisquer diligências instrutórias.
nada difícil é identificar o objetivo sub-primário que justifica estas alterações: pretende o legislador «acelerar», tanto quanto possível, a tramitação e decisão dos incidentes de levantamento do efeito suspensivo automático. não há aqui espaço para demonstrar cabalmente o ponto, mas julga-se que esse objetivo tem também toda a justificação. assim é na medida simples em que, desde 2015, e na maior parte dos casos de modo totalmente inexplicável, os tribunais administrativos consentiram e potenciaram que o decurso de um incidente, que se pretendeu sempre ultra-simplificado, se arrastasse por meses, senão mesmo anos. recorde-se: um incidente de matriz cautelar, enxertado numa forma de processo já de si “urgente”. claro que a redução dos prazos (de resposta do autor e de decisão do juiz) terá a esse propósito um alcance provavelmente marginal – sobretudo no caso do prazo de decisão do juiz, tendo em vista a sua costumada configuração enquanto prazo «meramente ordenador». mas mais relevante parece ser a proibição (é mesmo disso que se trata: de uma proibição) de realização de “quaisquer diligências instrutórias” (leia-se: inquirição de testemunhas, realização de perícias, requisição de documentos adicionais que não os já juntos pelas partes, etc.). dirão alguns que se trata de uma inadmissível restrição do «direito à prova». julga-se que não, e a razão é simples: o objetivo do incidente de levantamento do efeito suspensivo automático não é o de fixar factos orientados à produção de um comando decisório «substantivo»; é apenas o de providenciar ao juiz, de modo tão breve quanto possível, os elementos necessários para que se efetue a ponderação de interesses tendente ao «desbloqueio» ou «continuação do bloqueio» interlocutório dos efeitos do ato de adjudicação impugnado. fazer depender a elaboração desse juízo de complexas e aturadas diligências instrutórias (como a prática revela ter ocorrido em alguns casos) só servia para distorcer os propósitos deste incidente. como paralelo limitado, note-se, importa relembrar que, no domínio das providências cautelares, há também limitações deste tipo (proibição de prova pericial: 118.º/3 do CPTA), cuja constitucionalidade, segundo se sabe, nunca foi questionada.
3) critério de decisão do incidente
a questão de saber qual o «grau de esforço alegatório» que as entidades demandadas e os contrainteressados deveriam efetuar de modo a conduzir o juiz a proferir decisões de provimento no âmbito de incidentes de levantamento do efeito suspensivo automático foi uma das que, desde 2015, mais ocupou a jurisprudência e literatura da especialidade neste domínio. a versão reconhecidamente ambígua do texto da lei de 2015 abria a porta para sugestões de vário tipo. a de 2019 parece ter enfileirado pela ideia fundamental de que, neste contexto específico, não valeria uma “ponderação simples”: não bastaria que afetação do interesse público/outros interesses contrapostos ao do autor-impugnante se revelasse mais intensa do que a afetação do interesse deste último; esse mais teria de ser particularmente «qualificado», ao ponto de revelar “graves prejuízos” para o interesse público ou “consequências claramente desproporcionadas” para outros interesses.
lida a projetada nova versão do artigo 103.º-A/4, a conclusão é simples: o legislador pretende «dar um passo atrás», desgraduando o critério para uma bitola de ponderação simples: para que o juiz decida pelo levantamento, bastará doravante que, na base de um juízo ponderatório, se conclua que os prejuízos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo automático se revelam superiores aos que podem resultar do seu levantamento. é claro o paralelo com o critério de ponderação estabelecido a propósito das providências cautelares, seja a nível geral (cfr. o artigo 120.º/2), seja a nível das relativas a (outros que não os abrangidos pelo contencioso pré-contratual) procedimentos pré-contratuais (cfr. o artigo 132.º/4).
como não é também difícil de compreender, esta alteração parece orientada a «facilitar» o proferimento de decisões de levantamento. dir-se-á que é uma opção claramente pró-entidades adjudicantes. disso não parece haver qualquer dúvida. mas não há também qualquer dúvida quanto ao facto de ser afinal esse o critério que, embora de forma indireta (pois nelas não se regula um incidente de levantamento proprio sensu), as Diretivas estabelecem (cfr. os artigos 2.º/5 da Diretiva 89/665/CE e 2.º/4 da Diretiva 92/13/CEE, a propósito da adoção de medidas provisórias). seja como for, e ao contrário do que provavelmente se dirá, não parece que seja neste «passo atrás» que reside o principal das alterações agora projetadas introduzir nas ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual: a gradução e ponderação de prejuízos contrapostos é uma tarefa estruturalmente contextual. se bem se perspetiva, que a lei diga que o prejuízo para o interesse público tem de ser “grave” ou simplesmente “superior” aos demais interesses é afinal de contas algo mais simbólico do que verdadeiramente regulativo.
Excelente. Muito bem “apanhado” e sintetizado.
CurtirCurtir