analisei noutro post sete alterações que a PL n.º 41/XIV/1.ª perspetiva introduzir no CCP e cuja oportunidade me parece manifesta. alinho agora umas primeiras ideias sobre outra, entretanto já refinada pela «Errata» que o Governo fez chegar à AR: a concessão da possibilidade de, em algumas circunstâncias, serem adjudicadas propostas cujo preço se situe acima do preço base. é do que trata o projetadamente novo artigo 70.º/6, sobre o qual não é difícil antecipar virem a suceder-se diversíssimas ― e divergentes ― opiniões a respeito da sua bondade.

assim é desde logo na medida em que a previsão dessa possibilidade, a ser vertida na lei, corresponderá a uma efetiva novidade no quadro do Direito da Contratação Pública português, pelo menos se se tomar por referência o cenário pós-CCP. com efeito, e ao contrário do que eventuais intuições semânticas possam levar a crer, o preço base corresponde desde 2008 a um limite absoluto de admissibilidade material das propostas. traduzindo o “montante máximo que [a entidade adjudicante] se dispõe a pagar pela execução de todas as prestações que constituem o objeto do contrato, incluindo eventuais renovações do contrato” (cfr. o artigo 47.º/1), que deve em regra (salvo a exceção prevista no artigo 47.º/5) ser fixado no caderno de encargos, o preço base sinaliza ao mercado o limite do esforço monetário que a entidade adjudicante se predispõe a realizar com a celebração de um determinado contrato. e, dessa forma, condiciona, desse limite para baixo, o intervalo de preços dentro do qual se poderão mover os concorrentes na configuração das suas propostas. independentemente de assumir a função de efetivo «parâmetro base» ou de (mero) «limite máximo» (consoante o preço traduza um aspeto da execução do contrato submetido ou não submetido à concorrência = seja um fator densificador do critério de adjudicação), algo é pois certo: à luz da lei atual, qualquer proposta cujo preço se situe acima do preço base deve ser, não pode deixar de ser, excluída. é o que determina, hoje sem qualquer exceção, o artigo 70.º/2, d) do CCP.

assim não era exatamente, como se sabe, ao abrigo da legislação que antecedeu o CCP. ao apontar para a possibilidade de não adjudicação sempre que todas as propostas apresentadas apresentassem um “preço total consideravelmente superior ao preço base do concurso”, o RJEOP/99 (cfr. o artigo 107.º/1, b)) conferia ao preço base uma dimensão puramente referencial: em sendo fixado antecipadamente nas peças (e não tinha de o ser sempre), o preço base até poderia não ser respeitado ― isto é: poderiam ser objeto de adjudicação propostas que se desviassem, para mais, desse preço ―, mas apenas se o desvio não se revelasse consideravelmente superior. e sobre o que, para esses efeitos, se deveria entender como sendo um desvio consideravelmente superior, como é também bem sabido, não demorou muito até vingar a tese pretoriana do TdContas, de acordo com a qual o preenchimento desse «conceito indeterminado» se deveria fazer por paralelo com o limite de autorização dos trabalhos a mais, então fixado em 25%. quer isto dizer que as propostas cujo preço se revelasse superior ao preço base, conquanto o desvio não se traduzisse em mais de 25%, poderiam ser ainda assim adjudicadas; caso o desvio superasse esses 25%, não poderiam ser objeto de adjudicação (cfr., à época, e entre outros, este Acórdão do TdContas).

dir-se-á que ao admitir que em cenários em que todas as propostas apresentadas sejam excluídas, possa ainda assim ser adjudicada, de entre aquelas que só tenham sido excluídas por conta do seu desrespeito ao preço base, a que «menos o desrespeitou», o projetado artigo 70.º/6 recupera este antigo esquema de funcionamento meramente referencial do preço base. não é no entanto assim. é que, ao contrário do que sucedia à luz do RJEOP/99, o CCP continua e continuará a elevar o preço base a limiar máximo de admissibilidade material das propostas. quer dizer: mesmo que venha a ser vertida na lei esta alteração, a regra continuará a ser a de que as propostas que se situem acima do preço base não podem nunca ser adjudicadas (porque devem ser objeto de uma decisão de exclusão); ora, a regra vigente no RJEOP/99 era de certo modo a inversa: propostas situadas acima do preço base poderiam à partida ser sempre adjudicadas, salvo se o desvio em relação ao preço base se revelasse consideravelmente superior.

percebe-se assim que o alcance do projetado artigo 70.º/6 não é o de abolir, sem mais, a função limitativa do preço base; como aliás fica claro a partir da projetada nova redação do artigo 70.º/1, d), o seu alcance é antes e apenas o de estabelecer uma exceção à regra geral hoje vigente ― leia-se, ao dever (atualmente inderrogável) de excluir propostas cujo preço se situe acima do preço base. se convertida em lei, a solução do Código passará então a ser a seguinte: «as propostas cujo preço seja superior ao preço base devem ser excluídas, salvo se se verificarem os pressupostos previstos no artigo 70.º/6». e que pressupostos são esses? vários e de vária ordem. talvez possam agrupar-se assim:

primeiro:  a faculdade de adjudicação acima do preço base só vale no domínio dos concursos públicos ou concursos limitados por prévia qualificação ― não, por conseguinte, em nenhum outro tipo procedimental (ajuste direto, consulta prévia, procedimento de negociação, diálogo concorrencial, parceria para a inovação).

segundo: o acionamento desta faculdade depende de previsão antecipada no programa do concurso; dito de outro modo: a lei não é para este propósito fonte suficiente, exigindo-se uma manifestação publicamente anunciada da intenção da entidade adjudicante em poder vir a exercer essa faculdade.

terceiro: esta faculdade só se pode colocar em cenários em que todas as propostas apresentadas no concurso padeçam de alguma irregularidade conducente à sua exclusão, seja por que motivo for. isto é: apenas pode ser exercida   no âmbito de concursos «desertos» por exclusão de todas as propostas.

quarto: a adjudicação acima do preço base apenas pode recair sobre uma proposta cuja exclusão se tenha devido ― melhor: se viesse a dever ― apenas a esse motivo (violação do preço base); e, em havendo várias propostas nessa situação, apenas sobre aquela cujo preço proposto, embora superior, mais se aproxime do preço base. ou seja: de entre as excluídas apenas por violação do preço base, só pode ser adjudicada a que apresente um preço mais baixo.

quinto: ainda assim, esse preço não pode nunca ser superior: (i) nem ao «limite de valor» do procedimento em questão (o que só se coloca em relação a concursos «nacionais»); (ii) nem ao limite máximo de autorização de despesa do órgão competente para a decisão de contratar, havendo-o; (iii) nem a mais de 20% do montante do preço base.

sexto: mesmo quando respeitados esses limites, importa que o órgão competente para a decisão de contratar disponha, em concreto, de autorização orçamental para proceder a uma adjudicação por esse montante ― seja porque a autorização originária que o habilitou a abrir o concurso já lho permite, seja porque essa autorização é entretanto objeto de revisão.

sétimo: mesmo se reunidas todas as anteriores condições, a entidade adjudicante só poderá adjudicar uma proposta acima do preço base “excecionalmente” e “por motivos de interesse público devidamente fundamentados” (com o que de certo modo se recupera o pressuposto que o RJEOP, não o de 99 mas o de 93, enunciava a respeito da possibilidade de adjudicar propostas de valor consideravelmente superior ao preço base: cfr. o artigo 99.º/1, b)).

perante tantos e tão diversos pressupostos, uma primeira conclusão parece fácil de alcançar: será difícil que esta projetada previsão de adjudicação acima do preço base venha a ter um alcance transversal no universo da contratação pública portuguesa. pelo contrário, antecipa-se que o seu uso venha a revelar-se estatisticamente marginal. ainda assim, e talvez por causa disso, vale a pena perguntar: faz sentido consagrá-la na lei?

não é difícil de perspetivar qual a provável «razão justificativa» da sua consagração. sobretudo no domínio das empreitadas de obras públicas, a prática tem revelado não serem tão infrequentes assim os casos em que, por mais ou menos bem alinhado que o preço base se situe em relação aos “custos médios” de mercado, todas as propostas apresentadas revelam preços superiores. pode evidentemente especular-se sobre as causas últimas que conduzem a cenários deste tipo, umas mais saudáveis (pode dar-se o caso de o preço base definido pela entidade adjudicante não ter afinal correspondência com a prática do mercado), outras menos («conluios» entre os empreiteiros de modo a «forçar» a entidade adjudicante a “subir a parada”). seja como for, algo é certo: à luz da lei atual, perante cenários destes, só duas alternativas se abrem a uma entidade adjudicante que pretenda insistir na consumação do contrato: (i) adjudicação direta ex vi artigo 24.º/1, b) ― mas aí com exigência de manutenção do preço base (pois qualquer alteração do preço base corresponde, inevitavelmente, a uma não consentida «alteração substancial» do caderno de encargos), exigência essa que torna difícil, senão mesmo virtualmente impossível, encontrar no mercado algum operador disposto a respeitar esse limite de preço; (ii) abertura de novo concurso, aí sim com possibilidade de redefinir (“para cima”) o preço base.

pois bem: a previsão da faculdade excecional de adjudicar acima do preço base parece orientada ao propósito de «aligeirar» esta segunda alternativa. afinal: se uma entidade adjudicante se revela predisposta a rever o limite da sua disponibilidade orçamental, promovendo na sequência de um concurso deserto por exclusão de todas as propostas um novo procedimento, com subida do preço base na expetativa de encontrar uma resposta positiva do mercado, por que razão não permitir que o faça logo no contexto do “primeiro” concurso? em otimização de uma ideia de «aproveitamento procedimental», não fará sentido desobrigar as entidades adjudicantes que se apresentem nestas condições à promoção sucessiva de concursos com o mesmo objeto? a esta luz, deve reconhecer-se, a previsão de um mecanismo como o projetado pela PL n.º 41/XIV/1.ª para o artigo 70.º/6 do CCP parece pleno sentido. mas a sua consagração legislativa comporta também alguns riscos e suscita um conjunto não despiciendo de dúvidas.

o risco mais óbvio é o de, em sendo efetivamente acionada, a possibilidade de adjudicação acima do preço base acabar por «enfraquecer» a função limitativa do preço base e, com isso, incentivar o mercado a não “levar a sério” o montante inicialmente fixado pela entidade adjudicante no caderno de encargos. parece com efeito mais ou menos certo que, perante um comprador que anuncia simultaneamente que em princípio só está disposto a adquirir por 100, mas que talvez equacione a hipótese de vir a adquirir por 120, qualquer potencial vendedor “force a barra” até aos 120. será de facto difícil contrariar a ideia de que, apesar de «formalmente» fixado em 100, o preço base «real» (leia-se: a verdadeira “linha vermelha” do esforço monetário que a entidade adjudicante se predispõe efetuar) é afinal de 120. mas, se assim é, por que razão não foi o preço base desde início fixado em 120? dir-se-á que esta espécie de «duplicação» de preços base ― um «formal» e outro «real» ― é uma forma de salvaguardar a entidade adjudicante do erro que ela própria possa ter cometido no momento em que apresentou ao mercado um objeto contratual em relação ao qual, sob as condições monetárias primeiramente anunciadas, nenhum operador tem interesse. só que, olhando ao «pedagógico» artigo 47.º/3 do CCP, o sistema parece partir do pressuposto de que, no momento em que define o montante do preço base, a entidade adjudicante o faz de modo fundamentado e, sobretudo, com «adesão à realidade»…

acresce ― e este é seguramente o mais óbvio dos riscos ― que esta «duplicação» de preços base irá com grande probabilidade provocar um certo “efeito íman” suscetível de encarecer as propostas e, com isso, as aquisições públicas. isto para além de poder ser interpretada como forma de o legislador «caucionar» (quase que como “por desistência”) as eventuais más ― quando não mesmo ilícitas ― práticas dos operadores do mercado na formação dos seus preços.

um terceiro risco é o da litigiosidade. é que, tendo em conta a circunstância de a adjudicação acima do preço base se revelar sempre e apenas uma faculdade ao dispor da entidade adjudicante, e que por isso pode ou pode não ser exercida no final da fase de análise das propostas, avizinha-se que os termos do seu exercício venham a ser fonte de litígio, senão mesmo de «suspeita» ― in limine, com imputações de atuações mais ou menos (im)parciais das entidades adjudicantes, porque nuns casos «favorecedoras» de certos proponentes (os que vejam as suas propostas adjudicadas, apesar de superiores ao preço base), noutros «não-favorecedoras» de outros proponentes (os que não venham a beneficiar desse tipo de adjudicações). dir-se-á que, por dever constar antecipadamente do programa do procedimento, a possibilidade de adjudicação acima do preço base passa a ser uma regra do jogo que todos conhecem; e como a sua utilização em concreto depende da formulação de um juízo relativo ao “imperioso interesse público”, não é senão e precisamente à própria entidade adjudicante que cabe a discricionariedade de a acionar. pois sim; mas é justamente quanto ao modo de exercício desta discricionariedade que se poderão levantar, mais ou menos fundamentadamente, suspeitas sobre a reta atuação dos órgãos adjudicantes.

acrescem a estes riscos também algumas dificuldades «técnicas». entre outras (maxime, as que se prendem com a maior ou menor dificuldade em «flexibilizar» a autorização de despesa, assim como outras condicionantes financeiras, que bem podem ter o condão de aniquilar a faculdade de adjudicação acima do preço base), talvez valha a pena sublinhar a seguinte: fará esta possibilidade sentido em concursos em que: (i) ou o preço não seja, de todo, um fator densificador do critério de adjudicação; (ii) ou o preço não seja o único fator densificador do critério de adjudicação? com efeito, a partir do momento em que se abra a possibilidade de adjudicar a proposta «menos violadora» do preço base (ou  seja: a «mais baixa» de entre as violadoras), o fator decisivo dessa adjudicação passará a ser um e apenas um: o seu (mais baixo) preço. e, por ser assim, bem pode dar-se o caso de, no final do dia, a entidade adjudicante selecionar uma proposta que, à luz da modalidade do critério de adjudicação adotada (multifator ou monofator não assente no preço), não era a verdadeiramente melhor (apesar de ser a «mais barata»). a questão tem indiscutível pertinência; mas não parece que dela resulte um qualquer obstáculo «conceptual» à previsão da faculdade de adjudicar acima do preço base. recorde-se que um dos pressupostos para que esta faculdade possa ser mobilizada é o de todas as propostas apresentadas padecerem de irregularidades conducentes à sua exclusão. e, se assim é, ela só opera em cenários em que não houve logicamente espaço para se proceder à avaliação das propostas ― isto é, em cenários em que o critério de adjudicação não foi, não pôde ser, aplicado. por ser assim, a ideia de que a entidade adjudicante poderá acabar por adjudicar uma proposta que «não era a melhor» não passará, bem vistas as coisas, de um juízo com algum grau de futurologia. muito simplesmente porque, no momento em que se adjudique ao abrigo do artigo 70.º/6, nenhuma proposta foi submetida ao crivo do critério de adjudicação. logo, não há  qualquer base para qualificar umas propostas como «melhores» e outras como «piores».

não obstante, sempre se poderá dizer que, ao adjudicar nestes termos (ou seja: ao adjudicar, de entre as propostas excluídas apenas porque violadoras do preço base, e pressupondo que há várias, a «menos violadora») nestes contextos (ou seja: em contextos em que o preço não seja de todo, ou pelo menos não seja o único fator densificador do critério de adjudicação), a entidade adjudicante acaba na prática por “prescindir” do critério de adjudicação por si à partida definido. é que, de entre as várias propostas violadoras do preço base, a selecionada (ou potencialmente selecionada) será aquela que melhor compita em razão ― só em razão ― do fator preço. é bem verdade. mas, mais uma vez, não parece resultar daqui qualquer obstáculo conceptual. recorde-se que, em matéria de critérios de desempate, é perfeitamente possível (e as projetadas alterações ao artigo 74.º/5 tornam isso claro) que o critério de desempate não coincida com nenhum dos fatores densificadores do critério de adjudicação. se se quiser, algo de semelhante se passará em cenários de adjudicação acima do preço base quando sejam várias as propostas potencialmente adjudicáveis: a partir do momento em que todas se apresentam violadoras do preço base, todas elas estão de um certo modo «empatadas», pois todas são irregulares e, por isso, insuscetíveis de serem comparadas e medidas à luz do critério de adjudicação; a partir daí, por opção antecipadamente divulgada da entidade adjudicante anunciada no programa do concurso, passa a valer, como “critério de desempate”, o preço.

em suma: embora estranha à função hoje absoluta e inderrogavelmente limitativa do preço base, a previsão da possibilidade de adjudicação acima do preço base que a PL n.º 14/XIV/1.ª projeta introduzir no CCP tem ao menos uma virtude (agilização procedimental), comporta ao menos três riscos (enfraquecimento do instituto do preço base, “efeito íman” e litigiosidade) e suscita algumas dificuldades técnicas (garantia de autorizações orçamentais habilitadoras e «coerência» com modalidades do critério de adjudicação que não a monofator assente no preço). no contexto de uma iniciativa legislativa que parece ter por força matriz essencial uma ideia geral de «simplificação» e de resposta aos «constrangimentos» legais à realização de despesa pública, o que parece poder concluir-se é que o peso relativo daquela virtude terá, na equação ponderatória do legislador, suplantado as desvantagens associadas ou potencialmente associadas àqueles riscos e àquelas dificuldades. mas não é de modo algum indisputável que o resultado de tal equação seja, ou tenha de ser, esse.