avancei noutro post algumas primeiras ideias sobre as (cirúrgicas) alterações que a PL n.º 41/XIV/1.ª projeta introduzir no regime das ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual. deixando de lado as «medidas especiais» de contratação pública que com essa iniciativa legislativa governamental se pretendem instituir, e que a serem aprovadas terão indiscutivelmente muito relevo na prática das entidades adjudicantes dos próximos anos, debruço-me agora sobre algumas das (muito menos cirúrgicas) alterações projetadas nessa PL para o CCP.

antes, porém, uma observação de ordem geral, sob a forma de resposta à seguinte pergunta: fará sentido, menos de três anos volvidos sobre a (profunda) revisão de 2017, voltar a rever no CCP, e de um modo aparentemente tão substancial como o denuncia o número de alterações que se projetam introduzir no Código? dirão certamente alguns que a pretensão de estabilidade regulatória desaconselha sucessivas modificações legislativas, sobretudo em diplomas que, não só pelo nomen iuris, pretendem codificar segmentos nucleares dos subsistemas do ordenamento jurídico, como é indiscutivelmente o caso do Direito da Contratação Pública. mais conjunturalmente, dirão outros que o antecipável (e desejável) cenário de recuperação económico-social pós-pandemia, embora capaz de justificar a introdução daquelas «medidas especiais», não justifica por si só intervenções mais ou menos estruturais no Código dos Contratos Públicos.

são argumentos certamente ponderosos, mas que não parecem resitir à seguinte e muito intuitiva premissa: em podendo, o que está mal deve ser mudado. sem que aqui caiba a demonstração integral desse ponto, certo é que, sobretudo desde a revisão de 2017, que surgiu em resultado de um atribuladíssimo procedimento legislativo, algumas coisas estavam efetivamente «mal» no articulado do CCP. entenda-se: «mal» não no sentido de que, sob o ponto de vista das opções de política legislativa subjacentes, poderiam ser de outra forma (sob esse plano, inevitavelmente, há opiniões para todos os gostos, e sobre quase todos os artigos e alíneas do Código); «mal», isso sim, no sentido de corporizarem imperdoáveis violações das Diretivas, puros erros técnicos, quando não mesmo simples lapsos de remissão. pois bem: uma vista geral sobre as dezenas de alterações que a PL n.º 41/XIV/1.ª se propõe introduzir no corpo do CCP permite facilmente concluir que, muito mais do que nele imprimir uma qualquer paradigm shift, o que com elas se busca é, no essencial, sanar violações, erros e lapsos desse tipo. isso não significa no entanto que, em alguns casos, as alterações agora projetadas não comportem opções substanciais novas – como sempre, umas seguramente mais consensuais, outras menos.

é talvez ainda cedo para efetuar um juízo global sobre o resultado conjugado de todas essas alterações. as linhas que se seguem limitam-se pois a identificar e comentar brevemente sete dessas alterações. o juízo que se faz é que cada uma delas constitui por si só uma «boa razão» para rever o CCP.

1) «lotes residuais»: artigo 22.º/2

substitui-se, na parte final do artigo 22.º/2, a referência ao “deste limite” por “do somatório calculado nos termos do número anterior”. pode parecer subliminar, mas a substituição vai no corretíssimo sentido de alinhar o preceito com aquele que, em conformidade com as Diretivas, sempre deveria ter sido o seu alcance, e que só uma absolutamente descuidadosa intervenção do legislador de 2017 subverteu. «excecionando» o regime de agregação (de procedimentos e contratos) estabelecido no n.º 1 a propósito do cálculo do valor para efeitos de seleção das regras de escolha dos procedimentos, o n.º 2 do artigo 22.º exime dessa agregação os – assim conhecidos – «lotes residuais»: ou seja, procedimentos que, em tese, até deveriam ser somados para efeitos e nos termos do n.º 1, mas que dessa soma escapam por conta da sua baixa expressão económica e, sobretudo, do seu reduzido «peso» no conjunto. para que isso aconteça, dizem-nos as Diretivas (cfr., v.g., o artigo 5.º/10 da Diretiva 2014/24/UE), é necessário que se reúnam dois requisitos: (i) que cada um desses «lotes residuais», isoladamente considerado, não supere o valor de €80.000,00 (bens/serviços) ou €1.000.000,00 (obras); e (ii) que o conjunto desses «lotes residuais» não corresponda a mais de 20% do total do resultado da agregação operada nos termos do n.º 1 – como referem as Diretivas, interessa pois que “o valor total dos lotes [residuais] não [exceda] 20% do valor total de todos os lotes que a obra prevista ou a aquisição de fornecimentos análogos prevista ou a prestação de serviços prevista tenham sido dividida”.

era a respeito deste segundo requisito que a versão do artigo 22.º/2 do CCP saída da revisão de 2017 se revelava um perfeito equívoco, pois a referência ao «deste limite» parecia apontar, muito estranhamente, para um percentual sobre €80.000,00 ou sobre €1.000.000,00. a versão proposta acerta o regime e realinha o Código português com o regime das Diretivas.

2) ajuste direto na sequência de concursos com todas as propostas excluídas: artigo 24.º/1, b), 2, 3, 4 e 5

muito equívoco, a vários títulos mas nesse caso com alguma «culpa» das próprias Diretivas, era (e já desde 2008), o regime de permissão do recurso ao ajuste direto na sequência de procedimentos concursais em que todas as propostas apresentadas houvessem sido excluídas. o tema é suficientemente complexo para aqui ser minimamente abordado com desenvolvimento (para isso, vale a pena ler M. Kirkby, na Revista de Contratos Públicos 10, pp. 5-42), mas o que resulta das projetadas alterações da PL n.º 41/XIV/1.ª a este respeito é, em síntese, o seguinte: (i) ao contrário do que aparentemente fazem sugerir as Diretivas, esse regime não tem porque variar consoante nos situemos no domínio dos «setores clássicos» ou dos «setores especiais» (é o que explica a revogação dos atuais n.os 5 e 6 ); (ii) não é de modo algum pressuposto para o recurso ao ajuste direto nesses casos que, no anterior concurso, todas as propostas tenham sido excluídas (apenas) por razões por razões materiais (é o que explica o suprimento da primeira parte do atual n.º 2); (iii) essa circunstância – ser uma proposta excluída apenas por razões materiais no anterior concurso – é, antes, condição para que o respetivo proponente possa e deva ser convidado no âmbito do subsequente ajuste direto, mas isso apenas nos casos em que esteja em causa um procedimento tendente à celebração de um contrato de valor superior aos limiares das Diretivas (mesmo que se possa questionar a sua justificação, esta é efetivamente uma limitação que resulta das Diretivas); se assim não for (isto é: abaixo desses limiares), essa condicionante não existe, razão pela qual a escolha da(s) entidade(s) a convidar é, nesses casos, «livre» (é o que explica a contraposição entre as alíneas b) e c) do projetado n.º 4); (iv) o recurso ao ajuste direto em cenários deste tipo (assim como nos casos em que em anterior concurso não hajam sido sequer apresentadas propostas) também vale para as hipóteses em que o «deserto» se verifique em relação a apenas um ou alguns dos lotes em que se haja desdobrado o anterior concurso (é o que explica o – novo – n.º 5).

de todas estas mudanças, assim como de outras de pura arrumação (a subida do atual n.º 9 para n.º 2, por nele residir o primeiro e talvez mais importante pressuposto para recorrer ao ajuste direto nestes casos), crê-se resultar do artigo 24.º, a este propósito, um regime mais alinhado com as Diretivas e, também, mais amigo do intérprete.

3) fim da intersubstituibilidade entre ajuste direto/consulta prévia: revogação do artigo 27.º-A

eis uma das alterações com alcance verdadeiramente substancial. é bem sabido que, para além de ter «bipartido» o desde 2008 unitário ajuste direto em ajuste direto/consulta prévia (diferenciando-os pelo valor), a revisão de 2017 estabeleceu uma regra de «preferência» do segundo tipo procedimental em relação ao primeiro quando este fosse adotado na base de «critérios materiais». de acordo com o atual artigo 27.º-A, com efeito, deve adotar-se a consulta prévia sempre que, em algumas das situações previstas nos artigos 24.º a 27.º, “o recurso a mais de uma entidade seja possível e compatível com o fundamento invocado para a adoção [do ajuste direto]”. segura e ao menos abstratamente potenciador da concorrência, esta regra de preferência gera e tem gerado, na prática, significativas dúvidas quanto ao seu alcance, pela razão simples de não ser de todo em todo fácil descortinar em que casos (dos previstos nos artigos 24.º a 27.º) é que se verifica esse pressuposto de «intersubstituibilidade». olhando à literatura da especialidade, as propostas são variadas, mas apontam invariavelmente em sentidos diversos em relação a alguns casos. associada a uma provável pretensão de não habilitar que surjam aqui tentadoras investidas jurisprudenciais mais ou menos «criativas», é talvez esta a razão que explica a projetada revogação do artigo 27.º-A. mais profundamente, ela parece também justificar-se com base na ideia de que, contra todos os retóricos anátemas que lhe são dirigidos, o ajuste direto (com convite apenas a uma entidade) é, para certos casos, um procedimento «tão digno» como os demais, senão mesmo «o mais digno» de todos.

ao projetar revogar o artigo 27.º-A, o legislador parece por isso pretender «pacificar» de certo modo o cenário do lado das entidades adjudicantes nos casos em que a lei (em linha com as Diretivas) permite dispensar o apelo à – a qualquer – concorrência. desde que verificados os pressupostos de recurso ao ajuste direto por algum dos «critérios materiais» enunciados nos artigos 24.º a 27.º, deixará assim de ser necessário avaliar se, no caso concreto, há ou não espaço para a convocação direta de, pelo menos, três entidades. não que, nesses casos, a entidade adjudicante esteja proibida de recorrer à consulta prévia. a revogação do atual artigo 27.º-A parece ter simplesmente o sentido de a «desobrigar» a ponderar o recurso à consulta prévia; mas não parece impedi-la de recorrer a esse tipo procedimental nos casos em que a lei a habilite a recorrer ao ajuste direto – numa conclusão que, segundo se julga, é fácil de alcançar por via de um a maiori, ad minus a partir dos artigos 24.º a 27.º.

4) regime dos erros e omissões: artigos 50.º/4 + 378.º/3, 4 e 5

outro dos campos em que a revisão de 2017 potenciou as mais legítimas dúvidas foi o da identificação das consequências para o adjudicatário/cocontratante associadas à não identificação de erros e omissões das peças (maxime, do caderno de encargos) na fase de formação do contrato. e tudo porque, na base de uma conjugação de preceitos tudo menos clara: (i) o atual artigo 50.º/4 associa a essa não identificação as “consequências” previstas nos n.os 3 e 4 do artigo 378.º; mas (ii) esses n.os 3 e 4 do artigo 378.º, e sobretudo o n.º 3, parecem afinal apontar para a conclusão de não haver “consequência” alguma desse facto, mas tão-só a concessão de um prazo adicional, já em fase de execução, para o cocontratante proceder à identificação desses erros e omissões. com algum esforço interpretativo, talvez se pudesse concluir que, apesar das aparências, o regime se haveria mantido igual ao da versão originária do Código, com a remissão do artigo 50.º/4 para o artigo 378.º a dever ser lida como apenas se reportando às consequências fixadas nos seus n.os 3 e 4 (ou seja, para o dever de suportar metade dos trabalhos complementres de suprimento de erros e omissões não identificados, mas que fossem identificáveis, na fase procedimental). vozes não faltaram, no entanto, a apontar em sentido radicalmente inverso: o sentido daquela remissão e do conteúdo daqueles enunciados do artigo 378.º seria antes e efetivamente o de inverter o esquema vigente desde 2008, eliminando a regra de «partilha de responsabilidades» pelos erros e omissões que fossem identificáveis na fase de apresentação das propostas.

com o refinamento do alcance da remissão do artigo 50.º/4 e, sobretudo, com a nova redação do n.os 3, 4 e 5 do artigo 378.º, a PL n.º 41/XIV/1.ª abraça decisivamente aquela que parecia ser a «melhor doutrina», desde logo por ser a única verdadeiramente otimizadora do princípio da boa fé. em sendo vertida em texto de lei, não haverá pois dúvidas de que o adjudicatário/cocontratante suporta o custo de metade dos trabalhos complementares devidos para suprir erros e omissões do caderno de encargos cuja deteção fosse exigível na fase de formação do contrato. e deixará também de haver dúvidas quanto ao facto de esse tipo de erros e omissões  (referidos no artigo 378.º/3) ser apenas o «primeiro degrau» de outros em relação aos quais o adjudicatário/concontratante também responde partilhadamente: (i) os erros que só se revelem e só sejam detetáveis com e a partir da consignação da obra (artigo 378.º/4); e (ii) os erros que só se revelem e só sejam detetáveis já em fase de «plena» execução da obra (artigo 378.º/5) – numa solução e numa tripartição que parecem assim acolher, e julga-se que a muito justo título, oportuníssimas sugestões doutrinárias (veja-se, sobretudo, M. Assis Raimundo na Revista de Direito Administrativo 4, pp. 44-54).

5) preço anormalmente baixo: artigo 71.º

muitíssimo discutido e base para as mais profundas dissensões jurisprudenciais é, já desde a versão originária do CCP, o regime do preço (ou custo) anormalmente baixo. a revisão de 2017 atuou neste domínio de modo profundo, mas, segundo se julga, parcialmente desconforme com as Diretivas. olhando às projetadas alterações ao artigo 71.º, o que delas resulta é, em termos globais, um «passo atrás» em relação a algumas das mudanças introduzidas em 2017 e, assim, o alargamento do espaço em que pode e deve intervir o instituto do preço anormalmente baixo.

assim é, entre outras razões, na medida em que: (i) se elimina o duplo (e injustificadamente desincentivador) dever de fundamentar o porquê e os critérios do limiar de anomalia das propostas antecipadamente fixado nas peças do procedimento que hoje resulta do atual artigo 71.º/2 (passando apenas a exigir-se que, nesses casos, a entidade adjudicante «identifique» – não que justifique – os critérios que presidiram a essa definição); (ii) se consente ser possível qualificar (e, in limine, excluir) propostas em função do seu preço anormalmente baixo mesmo nos casos em que não tenha havido, da parte da entidade adjudicante, fixação antecipada do limiar de anomalia (é o que resulta do projetado novo n.º 2 do artigo 71.º, que assim recupera a habilitação que constava da versão originária do Código, que tinha e tem pleno suporte nas Diretivas, mas que a revisão de 2017 – ao menos aparentemente – havia suprimido); e, sobretudo, (iii) se reputa como constitutivas de preços anormalmente baixos as propostas que se revelem insuficientes para cobrir os “custos inerentes à execução do contrato” (parte final do novo n.º 2 do artigo 71.º), numa referência que parece apontar ao objetivo de, por via legislativa e em conformidade com aquela que parece poder ser entendida como a «filosofia» das Diretivas a este respeito (que pressupõem um alcance fundamentalmente “substancial”, não apenas “formal” de preço anormalmente baixo), reorientar a muitíssimo desacertada jurisprudência que, de há anos a esta parte, se veio formando na jurisdição administrativa – leia-se: a jurisprudência, com a do STA à cabeça, que vinha permitindo pacificamente que propostas cuja equação económica interna se revelasse comprovadamente insuficiente para cobrir os custos do contrato a celebrar não poderiam nunca ser excluídas por anormalmente baixas, com o falacioso (porque solipsista) argumento da «liberdade de iniciativa económica» dos concorrentes e, sobretudo, com base numa totalmente distorcida e redutora compreensão do significado da «concorrência» para efeitos de public procurement.

6) critério de adjudicação e suas modalidades: artigo 74.º

a PL n.º 41/XIV/1.ª propõe-se intervir no artigo 74.º do CCP de um modo amplo, mas, segundo se perspetiva, no essencial apenas clarificador.

rompendo com alguns equívocos terminológicos que afetam a atual versão desse preceito, clarifica-se, em primeira linha, que a diferença essencial na concretização do critério de adjudicação da proposta economicamente mais vantajosa radica na mobilização de vários ou de apenas um aspeto da execução do contrato como fatores de performance. é o que parece explicar a adoção da terminologia «multifator» e «monofator» como forma de, com maior apuro técnico, designar as duas modalidades do critério de adjudicação que já estavam de algum modo subjacentes à atual versão do Código (cfr., a esse propósito, J. Amaral e Almeida na Revista de Direito Administrativo 2, pp. 5-17).

a alteração vai, no entanto, mais além da pura terminologia, na medida em que: (i) torna claro que, no caso da adoção da modalidade monofator, o aspeto da execução do contrato submetido à concorrência pode ser qualquer um  – e não apenas o preço ou o custo, como numa certa leitura parece poder resultar do atual artigo 74.º/1, b);  isto ao mesmo tempo que se exige que, em sendo esse fator de natureza qualitativa, a sua avaliação se faça através de uma grelha (no fundo: uma parte de um modelo) de avaliação suscetível de descrever e traduzir classificatoriamente (embora não pontuadamente) os atributos a propor pelos concorrentes; (ii) ainda em relação à modalidade monofator, torna-se também claro que de modo algum o recurso a um único aspeto da execução contratual como fator densificador do critério de adjudicação deve ser entendido como «excecional» – ao contrário do que, numa leitura enganosamente precipitada, se poderá eventualmente retirar do atual, e em último termo lapalissiano, artigo 74.º/3; (iii) já em relação à modalidade multifatorial, a eliminação da referência à “melhor qualidade-preço” e a eliminação do atual 74.º/2 tornam por fim claro que o conjunto de fatores que o densificam pode perfeitamente não incluir qualquer aspeto de natureza quantitativa, maxime o preço – ou seja, essa modalidade pode saldar-se em aspetos de execução contratual estritamente qualitativos, dispensando-se nesse caso a obrigatoriedade que a atual versão do Código estabelece, em parte algo equivocadamente, quanto à definição de um “preço fixo ou preço máximo” (o que é consentâneo com o facto de, salvo casos excecionais, ser obrigatória a fixação de preço base: cfr. o artigo 47.º/1 e 5).

7) invalidade consequente: artigo 283.º-B

desde 2010 que, sob a epígrafe de «anulação de contratos com fundamento em vícios procedimentais» e em transposição direta de disposições das Diretivas «Recursos», o CCP previa um elenco de duas causas de invalidade consequente decorrente de violações de obrigações de tipo procedimental impostas pelo Direito da União Europeia (celebração do contrato sem prévia publicação de anúncio no JOUE ou em violação do prazo de standstill)  e, bem assim, um regime relativamente «específico» associado a essas causas de invalidade. era do que tratava o então artigo 283.º-A.

algo misteriosamente, a revisão de 2017 optou por converter essas causas e esse regime específico de invalidade consequente em matéria de «ineficácia contratual», assim se explicando a revogação daquele antigo 283.º-A e a transferência do seu conteúdo, agora sob as vestes de «ineficácia», para os n.os 5, 6, 7 e 8 do artigo 287.º do Código. se aqui reside a «explicação» da alteração introduzida em 2017 a este respeito, certo é no entanto que a solução por ela corporizada era, a todos os títulos, pura e simplesmente inexplicável. o legislador europeu apela a este propósito, é certo, à «privação de efeitos» e à necessidade de “as consequências de um contrato ser desprovido de efeitos” serem estabelecidas pelo Direito interno (cfr. os artigos 2.º-D das Diretivas 89/665/CEE e 92/13/CEE). mas como era e sempre foi claro, a referência a «privação de efeitos» tem aí um sentido absolutamente neutral. quer dizer: como sucede em muitíssimas matérias, e em particular em relação àquelas que tocam potencialmente com dados ou conceitos sistémicos de cada Direito nacional, o texto das Diretivas nunca se comprometeu com a específica qualificação a associar ao desvalor decorrente violação daquelas obrigações de tipo procedimental – se «invalidade», se «ineficácia», se outra coisa qualquer. no Direito português, porém, e ao menos de acordo com cânones da ciência do Direito Administrativa de há décadas, essa qualificação não poderia nunca deixar de situar-se no plano da «invalidade» (i.e., da inaptidão intrínseca para a produção de efeitos por preterição de requisitos de formação ou de conteúdo do ato), nunca da «ineficácia» (i.e., da inaptidão extrínseca para a produção de efeitos resultante da não observância de uma condição de eficácia). e, por ser assim, o juízo era simples: a uma tecnicamente correta solução de 2010, plasmada no artigo 283.º-A, a revisão de 2017 fez suceder um descaradíssimo erro técnico. e não se pense que a questão tem apenas relevância neste plano conceptual, bastando para o efeito questionar qual poderia ser instrumento processual através do qual se efetivaria a suposta «ineficácia» atualmente instituída no CCP a este título (uma ação de «reconhecimento» da ineficácia? e submetida a que prazo? nenhum?).

a revogação dos n.os 5, 6, 7 e 8 do artigo 287.º e a restauração, no local certo, daquele artigo 283.º-A, agora artigo 283.º-B, repõe o Código dos Contratos Públicos na reta dos bons conceitos.  coisa diferente, porém, é a de saber se o agora restaurado artigo 283.º-B dá resposta adequada ao tipo de invalidades com que lida. entre o mais, pode questionar-se se faz ou não sentido, ou se tem último termo algum significado substancial, a circunstância de a anterior regra do n.º 5 do artigo 283.º-A, habilitadora de uma restrição in futurum do efeito anulatório, não constar do projetado artigo 283.º-B. talvez se possa dizer que essa possibilidade já se encontra salvaguardada pela habilitação (mais ampla) de afastamento do efeito anulatório garantida, a título geral, pelo artigo 283.º/4 (para o qual remete o artigo 283.º-B/3). como sucede com toda a matéria da invalidade dos contratos públicos, contudo, o ponto seria merecedor de desenvolvimentos que não cabem neste post.