Com a aprovação do Decreto n.º 95/XIV, já remetido para promulgação, concluir-se-á a breve trecho (salvo eventual veto presidencial) mais uma revisão do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) – sobre a qual já alguma coisa foi sendo escrita, mas muito mais, seguramente, haverá a dizer e escrever (incluindo, espera-se, neste blog) quando o regime revisto entrar em vigor e começar a ser aplicado.
Entretanto, no meio de tantas revisões legislativas, há uma parcela do regime que já deveria ter sido revista – em rigor, já o foi, mas essa revisão conheceu um absurdo retrocesso – e que tem permanecido na obscuridade: refiro-me ao regime de autorização das despesas, que (ainda) consta dos artigos 16.º a 22.º e 29.º do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho.
Na verdade, como se sabe, o Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, a par de aprovar o CCP, revogou também diversos diplomas conexos com matérias relativas a contratação pública; no entanto, ao revogar o Decreto-Lei n.º 197/99, o artigo 14.º, n.º 1, alínea f) do Decreto-Lei n.º 18/2008 ressalvou expressamente que aquelas normas do citado diploma de 1999 se mantinham em vigor, justamente porque o legislador não tinha ainda aprovado um novo regime de autorização das despesas e não deveria cair-se num “vazio” normativo.
Esse novo regime viria a ser aprovado pelo Governo anos mais tarde, pelo Decreto-Lei n.º 40/2011, de 22 de Março; contudo, poucos dias depois, através da Resolução da Assembleia da República n.º 86/2011, de 30 de Março, o Parlamento determinaria a sua cessação de vigência, repristinando as normas do Decreto-Lei n.º 197/99 que haviam sido revogadas pelo Decreto-Lei n.º 40/2011.
Ora, deve ter-se presente que esta opção foi determinada por um profundo equívoco, uma vez que, recordando o “burburinho” político e mediático que então se gerou e que antecedeu a aprovação da Resolução da Assembleia da República n.º 86/2011, verifica-se que o principal argumento invocado para fazer cessar a vigência do Decreto-Lei n.º 40/2011 se prendeu com a circunstância de, alegadamente, o legislador ter aumentado o valor dos contratos que poderiam ser celebrados por ajuste directo – o que não tinha qualquer correspondência com o regime daquele diploma e, portanto, não constituía um pretexto “válido” para a opção politicamente tomada. É certo que aquele diploma revia “em alta” os limites de autorização de despesa, mas, além de essa elevação poder ser justificada pelo tempo entretanto decorrido (que recomendava uma efectiva actualização de valores, e não a sua mera conversão de escudos para euros), mas isso nada tinha que ver com a adopção de ajustes directos: assim, não era porque determinado órgão passava a ter competência para autorizar despesas até “x” mil euros não significava que passasse a poder ser adoptado o ajuste directo para a celebração de contratos com esse valor. Ou seja, uma coisa eram, e continuaram a ser, as regras de autorização da despesa, e outra coisa eram, e continuaram a ser, os limites ao valor do contrato a celebrar, quando o procedimento pré-contratual é escolhido em função do critério do valor.
Seja como for, independentemente disso – ou seja, mesmo que tivesse existido algum fundamento sério para a cessação de vigência do Decreto-Lei n.º 40/2011 e esta não tivesse resultado de um equívoco absurdo e incompreensível, como foi o caso –, não se vê razão para que se persista nesse equívoco ou para que, com base nele, se persista na anómala situação de o regime da autorização de despesa actualmente em vigor ainda ser o que foi aprovado há mais de 20 anos: ainda em escudos e pensado para um contexto que nada tem que ver com o que se vive hoje, tanto no que respeita à organização da própria Administração Pública, como no que se refere ao panorama da contratação pública (v.g., “leque” de procedimentos disponíveis, multiplicidade e complexidade das necessidades a que os contratos públicos visam fazer face, etc.).
Assim, já que tanto se legisla – e, por vezes, sem necessidade –, bem poderia agora aproveitar-se o ensejo e resolver de uma vez por todas este problema que, sem motivo plausível, continua pendente. E nem é preciso muito esforço: o articulado do Decreto-Lei n.º 40/2011, no essencial e com pequenos ajustamentos, poderia perfeitamente constituir uma boa base de trabalho.
Havendo discernimento e vontade para isso, já é mais do que tempo de revisitar este tema “esquecido”…
Uma nota adicional para lembrar quão facilmente a matéria da contratação pública se presta a este tipo de alterações ou “retrocessos” legislativos precipitados, sem ponderação e apenas “a reboque” do primeiro clamor na opinião pública: basta pensar, para dar um exemplo recente (do início deste ano), na curta e efémera vigência do Decreto-Lei n.º 170/2019, de 4 de Dezembro, sob o pretexto de que este diploma teria vindo (inovadoramente, supõe-se) “retirar” as autarquias locais do âmbito do regime das PPP – como se aquelas aqui estivessem incluídas, independentemente deste diploma…
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