Foi publicada aqui uma pequena nota que escrevi sobre o artigo 476º do anteprojecto (brevemente sairá, noutro local, uma versão mais desenvolvida do mesmo escrito).
O tema da resolução de litígios é fundamental para que o sistema da contratação pública funcione. Essa exigência é particularmente relevante na fase pré-contratual, por razões evidentes. É possível pensar em diversos modelos e o direito comparado apresenta essa diversidade, mas mais do que defender este ou aquele modelo, eu diria que o importante é saber o que queremos desse modelo de resolução de conflitos. As exigências a fazer a qualquer modelo são, a meu ver, essencialmente três: celeridade, especialização (porque promove a qualidade das decisões, e também a celeridade, que decorre da familiaridade com as matérias) e institucionalização (porque promove a previsibilidade das decisões, gerando confiança no sistema).
Como refiro na nota, defendo a solução do anteprojecto, que procura ser pragmática e contribuir, aqui e agora, para a melhoria do sistema de resolução de litígios. Poderia pensar-se num sistema de alcance mais amplo, e poderá continuar a pensar-se, mas o que está proposto tem a virtualidade de poder começar a ser aplicado de imediato, ao contrário do que aconteceria com qualquer modelo que implicasse constituir, do nada, órgãos para-jurisdicionais, ou criar secções especializadas nos tribunais administrativos, por exemplo.
Deve notar-se que o anteprojecto não esvazia de competências os tribunais administrativos, porque não estabelece qualquer regime de arbitragem obrigatória: as entidades adjudicantes escolhem se querem submeter-se a esse regime (excepto, claro, se já estiverem submetidas à vinculação do artigo 187º, nº 2, do CPTA, mas isso nada tem que ver com o anteprojecto). A única coisa que se estabelece é que, feita a opção pela arbitragem, se prefira a arbitragem institucionalizada, embora permitindo a opção fundamentada pela arbitragem “ad hoc”.
O anteprojecto também não consagra, a meu ver, qualquer forma de arbitragem necessária (em estudo recente, Tiago Serrão e Marco Caldeira defenderam tese contrária, embora se deva notar que nessa altura raciocinavam hipoteticamente, apenas face ao artigo 180º, nº 3, do CPTA, pois ainda não existia anteprojecto de revisão do CCP). De facto, não há arbitragem necessária porque cabe ao interessado fazer um juízo global sobre o seu interesse em participar num dado procedimento, considerando o conjunto das peças procedimentais (incluindo a eventual escolha da arbitragem pela entidade adjudicante). Aliás, um concorrente tanto pode ter interesse em só participar num concurso se não existir arbitragem, como pode ter interesse em só participar se existir arbitragem (já que os particulares também conhecem os atrasos comuns nos tribunais portugueses). Assim como o particular pode estar inteiramente de acordo com a opção (qualquer que ela seja) da entidade adjudicante quanto à forma de resolução de litígios, mas mesmo assim não participar no procedimento, porque o preço é muito baixo, o prazo muito curto, o local de execução muito longe ou qualquer outra razão. Ou seja: a meu ver, há sempre um exercício de autonomia de ambas as partes (a entidade adjudicante e o interessado), que abrange, entre muitas outras matérias das peças procedimentais, a questão do modo de resolução de litígios, e que permite continuar a falar em arbitragem voluntária.
Por fim, e apesar de se tratar de uma solução que tem merecido crítica de alguns quadrantes, acho que o anteprojecto anda bem ao prever, no artigo 476º, nº 5, aquilo que na prática é o afastamento da regra geral (constante da LAV), segundo a qual a decisão arbitral apenas pode ser impugnada através de pedido de anulação. Penso que em certos casos a relevância social dos litígios aconselha que os tribunais do Estado tenham a possibilidade de se pronunciar sobre o fundo das decisões e acho o critério do valor do litígio um critério perfeitamente válido (além de seguro) para indicar a fronteira dessa relevância, a partir da qual aquela possibilidade deve sempre existir – a possibilidade, repare-se, porque a norma não impõe o recurso, limitando-se a estatuir que ele é possível.
MAR
Miguel,
Excelente post e artigo na newsletter do CAAD (fico a aguardar a publicação da versão desenvolvida).
O tema da arbitragem, tal como vem configurado no Anteprojecto, tem muito que se lhe diga. Em breve conto poder partilhar algumas reflexões sobre isso neste fórum.
Por ora, queria apenas clarificar que eu e o Tiago Serrão nos pronunciámos efectivamente em abstracto, antes de ser conhecida a solução do Anteprojecto. O que nos parece é que, qualquer que seja o modelo adoptado (recurso a centros institucionalizados ou arbitragem ad hoc), a aceitação da arbitragem pré-contratual não pode ser condição da participação de algum interessado no procedimento, na medida em que se trata de uma medida (potencialmente) restritiva e que não tem ligação directa com o objecto do contrato. Isto é, a entidade adjudicante não pode impor aos interessados a aceitação da arbitragem: uma espécie de arbitragem necessária por imposição administrativa. Parece-me muito chocante que a Administração possa dizer “só participas no procedimento se aceitares que os litígios que nele se suscitem (e que estarão relacionados com eventuais ilegalidades que eu cometa) sejam resolvidos através dos meios que eu própria escolha”. Ou, em formulação menos coloquial (mas, ainda assim, sugestiva): não pode ser exigido a alguém que abdique da tutela estadual “em troca” da sua participação no procedimento.
Por esse motivo, tenho sérias dúvidas sobre a legalidade de uma cláusula (legal ou procedimental) que comine com a exclusão da proposta a falta de apresentação da declaração de aceitação do compromisso arbitral. É que, aí, falar em arbitragem “voluntária” é uma pouco menos do que uma ficção: é claro que o interessado pode recusar a arbitragem, não participando no procedimento, mas a questão não é (nem pode ser) essa. Em geral, qualquer um de nós pode evitar praticar as condutas que nos façam recair sob a previsão de uma determinada norma, mas daí até dizer que essas normas são de cumprimento voluntário vai alguma distância… mal comparado, seria como dizer que o pagamento de IRS não é voluntário, porque todos podemos “escolher” não prestar trabalho remunerado (sujeitando-nos às consequências daí decorrentes)…
Retomo aqui o que então escrevi com o Tiago: “Nem se procure contrapor que, quando alguém participa num procedimento, deve aceitar as “regras do jogo” em bloco, pelo que, ao apresentar proposta ou candidatura num procedimento pré-contratual que prevê o recurso à arbitragem, o operador económico está a concordar expressamente (também) com aquele mecanismo de resolução de litígios. Este tipo de argumentação, apesar de aparentemente irrepreensível sob uma perspectiva formal, enferma porém de dois vícios: por um lado, (i) esquece que a apresentação de uma candidatura ou proposta num procedimento pré-contratual não significa, substantiva ou processualmente, uma “aceitação” das peças, para efeitos da sua eventual impugnação contenciosa (…); por outro lado, (ii) trata-se de uma argumentação artificiosa, que confunde dois planos distintos, o do preenchimento da previsão da norma e o do seu carácter imperativo ou facultativo. Na verdade, a levar-se o argumento ao limite, nunca haveria arbitragens necessárias: por exemplo, mesmo quando a lei prevê obrigatoriamente o recurso à arbitragem para litígios ocorridos durante a execução do contrato, ainda assim a arbitragem teria sido consentida pelo co-contratante privado, quando aceitou celebrar o contrato…
Como é evidente, o que está em causa não é saber se o operador económico pode ou não evitar cair na previsão da norma – não participando no procedimento ou não celebrando o contrato –, mas sim saber se, querendo impugnar um acto da entidade adjudicante ou contratante, pode livre e validamente fazê-lo junto dos Tribunais Administrativos ou se está constrangido a recorrer a um tribunal arbitral para esse efeito.” (cf. “As arbitragens pré-contratuais no Direito Administrativo português: entre a novidade e o risco de inefectividade”, in AA.VV., Arbitragem e Direito Público, AAFDL, 2015, página 309, nota 57).
Mas enfim, admito que a questão gere discussão. O meu post é, aliás, um contributo para isso mesmo. 🙂
Abraço
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Exmo. Sr.
Dr. Marco Caldeira,
Como diz e bem, o seu post é uma contributo para que se gere “discussão”, o que é sempre benéfico, pois aprende-se muito e gostei muito da sua explanação.
Nesse sentido, deixo este exemplo hipotético, mas possível de suceder:
Podemos ter um programa de concurso com o Anexo XII, aceite e preenchido por todos os concorrentes – exceto um – o qual por acaso sairá “vencedor” do concurso (será o adjudicatário apesar de não ter “aderido” ao referido Anexo).
No entanto, caso algum dos concorrentes preteridos recorra à arbitragem, este putativo “vencedor” poderá/deverá “servir-se” à posteriori dum regime a que não aderiu? Mais, poderá defender-se nos tribunais administrativos, caso lhe seja vedado o recurso à arbitragem, “ultrapassando” como diz e bem uma “arbitragem necessária por imposição administrativa”?
Estas hipóteses podem parecer absurdas, mas da minha experiência, tenho a plena convicção que casos como estes vão suceder.
Com os meus melhores cumprimentos,
Bartolomeu Noronha
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Prof. Miguel Assis Raimundo e Dr. Marco Caldeira, pequenas notas sobre o artigo do anteprojecto e as V. observações:
a) A opção pela sujeição dos litígios a arbitragem é voluntária para as entidades adjudicantes mas, feita essa opção, ela torna-se obrigatória para todos (entidade adjudicante, concorrentes, candidatos, interessados e cocontratante). Não é assim? Se a entidade adjudicante optar pela via arbitral, um concorrente pode apresentar proposta, condicionando a mesma à possibilidade de se optar, a final, pela “via estadual”, ou, pelo menos, sujeitar essa matéria a negociação (se a mesma for possível)?
Não parece que assim seja, isto é, em termos práticos estar-se-ia – parece-me mas não tenho nenhuma posição dogmática sobre esta matéria – que se estaria criar uma espécie de impedimento à participação nos procedimentos a todos aqueles que não queiram aderir à via arbitral.
b) No artigo 476.º, o legislador revela claramente uma preferência pela arbitragem institucionalizada, opção cujo mérito não discuto (e que pela minha experiência pessoal subscrevo), prevendo no n.º 3 as condições em que essa opção preferencial pode ser excluída pelas entidades adjudicantes.
Julgo, porém, que:
i) Por uma questão de transparência, deveriam ser melhor explicitadas as razões pelas quais o legislador faz essa opção (é uma questão de política legislativa, digamos assim, mas é relevante saber se, por exemplo, foi feito algum estudo ou avaliação da “experiência arbitral” que justifique essa opção);
ii) As condições previstas no n.º 3 são de tal modo diversas e, segundo creio, difíceis de preencher (e justificar/fundamentar), que talvez fosse mais consequente eliminar esta disposição (mas sou sensível ao eventual argumento de que sempre teria de se prever uma “válvula de escape” para aquelas situações em que a arbitragem institucionalizada não se revelar adequada. Mas admito que se produzirão laboriosas peças jurídicas para tornar esta exceção na regra para os processos mais complexos (e financeiramente mais relevantes) do Estado (em sentido amplo).
c) Concordo que o “critério do valor”, para além de seguro (e objectivo), previsto no n.º 5, é adequado para marcar a fronteira em que que as decisões são passiveis de recurso. Sucede, porém, que entendo que esse recurso deveria ser obrigatório para o Estado porque, justamente, a relevância social, económica e financeira de alguns litígios justificam plenamente essa obrigatoriedade. Acrescento que essa opção conduzirá, fatal e inevitavelmente, a uma melhoria assinalável da qualidade das decisões arbitrais (e levará à adoção de critérios mais exigentes e seletivos por parte dos parceiros privados nos pedidos de indemnização ou equivalentes feitos ao Estado).
Por fim, nos litígios com aquela relevância e com a fronteira delimitada pelo valor em causa, julgo que se deveria analisar esta matéria não tanto (ou só) na ótica de qual a jurisdição mais adequada ou apta a dirimir este tipo de litígios, mas encarando antes o problema na ótica do risco, especialmente económico e financeiro, do Estado, ou seja, a possibilidade de recurso aos tribunais arbitrais não pode deixar de ser vista com um risco financeiro para o Estado, tendo em conta as decisões em que o Estado se vê condenado ao pagamento de quantias avultadíssimas (mesmo que, em muitos casos, de montantes muito inferiores aos peticionados, situação esta aliás que também deveria merecer outra atenção e ponderação por parte do legislador).
A minha dúvida é se todas a decisões arbitrais não deviam ser recorríveis já que, independentemente de estarmos perante uma arbitragem necessária ou voluntária, a realidade é que um concorrente ou candidato que queira participar no procedimento vê excluída a possibilidade de recorrer aos tribunais estaduais para a resolução de litígios e, portanto, pelo menos numa segunda fase, deveria ter essa prerrogativa.
d) Ainda que em termos restritivos, a possibilidade de recurso a arbitragens não institucionalizadas é uma possibilidade e, portanto, o regime aplicável a estas em termos de, por exemplo, estatuto dos árbitros e condições de seleção dos mesmos, deveria ser uniformizado, beneficiando, por exemplo, da experiência que já existe nesta matéria nas arbitragens tributárias. Penso que esta matéria deveria ser objecto de regulação.
Cumprimentos
João Canto e Castro
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Os meus parabéns pelo artigo, pela forma lúcida como aborda a questão.
Na semana passada, o Jornal de Negócios publicou uma entrevista com o Sr. Dr. Duarte Abecasis, o qual considera que as mudanças do novo Código dos Contratos Públicos em relação à arbitragem a tornaram “… quase desinteressante para resolver litígios…”, incluindo nesse âmbito as arbitragens nos processos pré-contratuais.
Entendo e sou sensível ao alcance desta afirmação, mas apenas para determinadas situações concretas, nomeadamente para “grandes arbitragens” (terminologia pouco técnica, mas elucidativa).
Creio que somente a prática futura – poderá confirmar se a possibilidade das entidades adjudicantes indicarem um centro de arbitragem institucionalizado para o julgamento de questões relativas ao procedimento de formação do contrato – constituirá ou não uma nova praxis de “uso corrente”.
Caso o seja, estou convicto que esta alteração será uma “arma” poderosa” no combate aos atrasos da nossa justiça.
Com os meus meus melhores cumprimentos,
Bartolomeu Noronha
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Caro Dr. Bartolomeu Noronha, obrigado pelo seu comentário. Concordo que a prática vai ser decisiva, dado que as entidades adjudicantes têm possibilidade de escolher ou não a arbitragem. Com os melhores cumprimentos, Miguel Raimundo
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Caro Dr. Miguel Assis Raimundo, muito obrigado por responder ao meu comentário.
Entretanto para melhor contextualizar as declarações do Dr. Duarte Abecasis ao Jornal de negócios, passo a citar:
“”… o problema que a lei tem é que vem dizer que as arbitragens em contratos superiores a 500 mil euros são sempre objeto de recurso a decisões do tribunal arbitral….”
Acrecentando ainda “…A partir do momento em que estou a dizer que a decisão do tribunal arbitral se torna não uma decisão definitiva, sou capaz de estar a tirar à aribtragem grande parte do interesse que ela tinha.”
Com os melhores cumprimentos,
Bartolomeu Noronha
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Exmos. Srs. Drs., Miguel Assis Raimundo e Marco Caldeira,
Na sequência do meu comentário anterior, estive a analisar com mais atenção as implicações do artigo 476.º, relativamente à designada “arbitragem necessária por imposição administrativa”.
Parece ser claro, que caso a entidade adjudicante opte pela sujeição dos litígios a arbitragem de acordo com o modelo previsto no Anexo XII, esta será “obrigatória”, dado que al. n) do n.º 2 do art. 146.º, prevê a exclusão das propostas em violação das regras do n.º 4, do ar. 132.º (caso esta “regra especifica”, esteja prevista no programa de concurso).
Com os meus melhores cumprimentos,
Bartolomeu Noronha
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