O artigo 57.º/3, segundo parágrafo, da Directiva 2014/24/UE permite que os Estados-Membros derroguem a exclusão obrigatória prevista no n.º 2 desse preceito (falta de cumprimento das obrigações do operador económico em matéria de pagamento de impostos ou contribuições para a segurança social) “caso a exclusão se afigure manifestamente desproporcionada, nomeadamente: quando se trata apenas de pequenos montantes de impostos ou contribuições para a segurança social que não foram pagos; ou quando o operador económico foi informado do montante exato da sua dívida (por incumprimento das suas obrigações de pagamento de impostos ou de contribuições para a segurança social) num momento em que não podia tomar as medidas previstas no n.º 2, terceiro parágrafo, antes de expirado o prazo de apresentação do pedido de participação ou, nos concursos públicos, o prazo de apresentação da proposta”.
O Anteprojecto não acolhe esta derrogação – e é pena.
Parece-me, de facto, que esta possibilidade é meritória, sobretudo em países como Portugal.
Em primeiro lugar, porque a Administração tributária tem vindo a mostrar-se paulatinamente agressiva e, não raro, comete lapsos de facto e de Direito, sendo certo que, muitas vezes, se demora meses só até resolver o problema graciosamente (isto é, no melhor cenário, quando não tem de se ir para Tribunal, e aí esperar anos… uma ilustre Conselheira do nosso STA deu no mês passado uma entrevista bem ilustrativa da postura reprovável que o Fisco assume em juízo, num número assinalável de processos).
Em segundo lugar, porque, em épocas de crise como aquela que vimos atravessando há vários anos, é normal que as empresas nacionais (sobretudo as PME) sintam dificuldades em cumprir pontualmente com todas as suas obrigações. De resto, as entidades públicas são as primeiras a dar o mau exemplo, com atrasos inconcebíveis no pagamento das suas dívidas, apesar de todo o esforço legal no sentido de encurtar os prazos de pagamento. Ora, parece excessivo penalizar uma empresa por dívidas ao Fisco e à Segurança Social, quando estas podem resultar da própria falta de pagamento dos créditos dessa empresa por parte das entidades públicas.
Em terceiro lugar, porque, independentemente de tudo isto, a própria celebração e execução do contrato podem constituir um meio de assegurar o pagamento das dívidas existentes. Não só porque, por vezes, aquele contrato pode constituir uma “tábua de salvação”, a diferença entre a empresa fechar portas ou continuar em actividade, mas, sobretudo, porque a execução do contrato gera fluxos financeiros que a empresa pode canalizar para o pagamento das suas dívidas ao Fisco e à Segurança Social. E nem se diga que nada garante que a empresa utiliza efectivamente esses meios para saldar tais dívidas, pois, pelo menos no que respeita à Segurança Social, o artigo 198.º/3 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, prevê que as entidades públicas podem reter até 25% do valor dos pagamentos a efectuar (neste caso, ao co-contratante), quando tais pagamentos excedem € 5.000 (não consegui confirmar se existe uma norma idêntica relativamente ao Fisco, sendo que o que os artigos 89.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário prevêem é algo distinto da retenção, é mais uma compensação). A lei, portanto, já prevê uma forma de assegurar que pelo menos parte das receitas do co-contratante ao abrigo do contrato possam (devam) ser entregues à Segurança Social, para liquidação de dívidas.
Em contraposição, impedir um operador económico de participar num procedimento pré-contratual por dívidas insignificantes (por absurdo, de € 1), que até podem resultar de um lapso dos serviços ou terem sido notificadas num momento tardio, parece-me excessivo. A mesma lógica que está subjacente ao novo regime dos suprimentos de candidaturas e de propostas (constante dos novos números 3 e 4 do artigo 72.º), de evitar “exclusões desproporcionadas e prejudiciais para o interesse público” (cf. o preâmbulo do Anteprojecto) imporia, senão por maioria, pelo menos por identidade de razão, a consagração desta derrogação no nosso ordenamento. De notar que aqui estaríamos apenas a utilizar uma possibilidade conferida pelas próprias Directivas, a qual, além de justa, encerra menos problemas de aplicação prática do que a própria possibilidade de suprimentos de candidaturas e de propostas, que o Anteprojecto agora veio prever.
O art. 31-A do decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho, que aprovou o regime jurídico da administração financeira do Estado, que os sucessivos Orçamentos de Estado têm vindo a fazer aplicar também às autarquias locais, prevê, no n.º 1, que “antes de efectuarem pagamentos a entidades, devem verificar se a situação tributária e contributiva do beneficiário do pagamento se encontra regularizada quando:
a) O pagamento em causa se insira na execução de um procedimento administrativo para cuja instrução ou decisão final seja exigida a apresentação de certidão comprovativa de situação tributária ou contributiva regularizada; e
b) Já tenha decorrido o prazo de validade da certidão prevista na alínea anterior ou tenha cessado a autorização para a consulta da situação tributária e contributiva.”
E no n.º 3 que “Quando se verifique que o credor não tem a situação tributária ou contributiva regularizada, as entidades referidas no n.º 1 devem reter o montante em dívida, com o limite máximo de retenção de 25 % do valor total do pagamento a efectuar, e proceder ao seu depósito à ordem do órgão da execução fiscal.”.
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Cara Sofia,
Obrigado!
Com todos os mecanismos legais para assegurar o pagamento das dívidas tributárias e contributivas, bem podia o legislador agora “abrir” esta “porta” à participação de operadores económicos com dívidas de pequeno montante.
Marco
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Boa tarde Caro Marco
A generosidade com as pequenas dívidas à fazenda pública e à previdência não foi sentida aqui ao lado. O novo regime da contratação pública espanhola mantém a proibição absoluta.
Em Portugal, poderiamos imaginar um teto de não impedimento, em termos de limite mínimo para cobrança? No CIRC é de 24,94 € (artigo 111.º do CIRC).
A pensar.
Cumprimentos,
Luís Marques
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