1. A chamada contratação pública estratégica traduz a importância de incorporar o pensamento típico da sustentabilidade. A sustentabilidade, princípio de direito europeu e nacional, pressupõe a necessidade de quebrar a compartimentação estrita dos domínios de política pública. Quando referida no contexto da contratação pública, a sustentabilidade aparece, de certo modo, como herdeira e síntese da temática das políticas secundárias (ambiental, social, de inovação), valorizando-se precisamente o facto de elas não serem, realmente, secundárias, mas antes, como passou a dizer-se, horizontais. O desafio é o de incorporar transversalmente, nos diversos domínios da acção pública – no caso que nos interessa, a contratação pública – uma atenção à sustentabilidade em todas as suas dimensões.

A sustentabilidade aponta, assim, para um dever de ponderação dos diversos interesses relevantes no contexto da decisão pública, sabendo que a defesa dos valores ambientais dificilmente poderá ter lugar contra o desenvolvimento económico, ou este contra a solidariedade e a dignidade da vida das pessoas, ou esta contra finanças públicas saudáveis.

2. Estas considerações enquadram a proposta de consagração (de recuperação) de um quadro alargado de princípios jurídicos, no artigo 1º-A que o anteprojecto adita, incluindo-se entre eles o princípio da sustentabilidade.

A este propósito, é importante notar que assim se propõe a ultrapassagem do entendimento, a meu ver, empobrecedor, que a versão originária do CCP adoptou acerca dos princípios, corporizado no seu artigo 1º, nº 4. Num diploma como o CCP, o quadro de referência principiológica tem de ser abrangente, sob pena de as opções saírem enviesadas, pouco integradas, como se o direito dos contratos públicos não fizesse plenamente parte de um sistema mais amplo. Há que recordar que, como foi agora sublinhado na Doutrina, “em matéria de contratos públicos, se entrecruzam no ordenamento jurídico português os princípios constitucionais da atividade administrativa com os princípios gerais do Direito Europeu dos Contratos Públicos.” (Maria João Estorninho, “Uma oportunidade perdida… Breve apreciação crítica do Anteprojeto de agosto de 2016 de revisão do Código dos Contratos Públicos”, Cadernos de Justiça Administrativa, 118, 2016, pp. 3 ss., p. 7).

É justamente por isso que o artigo 1º-A tem o conteúdo amplo que tem, com referências a princípios gerais, a princípios sectoriais que valem na contratação pública, e a alguns corolários de uns e outros. Dessa forma se expressa, num único local, a variedade dos valores e interesses presentes na contratação pública, precisamente para dar nota de que neste sector se deve essencialmente procurar conciliar coisas tão importantes e por vezes tão aparentemente inconciliáveis como interesse público, integridade, concorrência e sustentabilidade.

3. Assim, não subscrevo a posição de alguns autores (cf. João Amaral e Almeida/Pedro Fernández Sánchez, Comentários, 2016, pp. 32 ss.), que, norteados por uma certa postura metodológica de fecho à relevância autónoma dos princípios, e particularmente impressionados com alguns exercícios de controlo jurisdicional de que discordam, se opõem à consagração de um preceito como o do artigo 1º-A, chegando mesmo a aludir a um “grave perigo para a segurança jurídica”.

Como há muito notou Sérvulo Correia, o apuramento das fronteiras do controlo jurisdicional da actividade administrativa é realmente um programa para as próximas décadas (Direito do Contencioso Administrativo, I, Lisboa, 2005, p. 410). E não é difícil reconhecer que existem, pontualmente, algumas decisões em que pode discutir-se se a fronteira não foi ultrapassada.

Porém, o apuramento daquelas fronteiras faz-se, como refere o citado Autor, pela aplicação dos métodos da ciência jurídica do direito público, já dotados de razoável objectividade, pelo acompanhamento atento e pela utilização dos mecanismos de recurso para os tribunais superiores. Não, certamente, – acrescento eu – por uma espécie de omissão selectiva do quadro de princípios aplicável, ou por uma crença, hoje insustentável, na capacidade de o legislador resolver todos os problemas através de normas-regra perfeitamente fechadas.

Por outro lado, também perfilho a ideia de que se deve evitar uma prática de, por tudo e por nada, criar ou reiterar princípios jurídicos, gerais ou especiais – mas um Código dos Contratos Públicos é o lugar adequado para consagrar uma referência abrangente ao quadro de princípios que os decisores públicos, e também os agentes económicos (categorias de sujeitos a que em primeira linha se dirige o artigo 1º-A) devem ter presentes quando contratam.

4. O anteprojecto não se limita, por comparação com o CCP actual, a consagrar um quadro mais rico de princípios. São muitos os mecanismos concretos de implementação da contratação estratégica que se encontram no anteprojecto: muitos decorrentes das directivas, mas muitos outros de iniciativa nacional, que permitem considerar este como um domínio especialmente presente no diploma.

Na intervenção que deu origem a esta apresentação procurei detalhar e exemplificar alguns desses mecanismos. São pontos importantes desta reflexão os regimes que o anteprojecto dedica, por exemplo, ao critério de adjudicação, à divisão em lotes, à utilização de meios electrónicos ou aos contratos com forte componente de inovação.

Confirma-se a ideia, bem presente na Doutrina, de que o sistema da contratação pública oferece uma multiplicidade de formas de acolher preocupações de sustentabilidade, sejam elas ambientais, sociais, de inovação e de promoção do acesso das PME, ou outras. A preocupação essencial do anteprojecto é habilitar e regular essas múltiplas ferramentas; caberá às entidades adjudicantes, na sua autonomia, utilizá-las de modo equilibrado e criterioso.

MAR