Como é natural, a maioria das intervenções na discussão pública focou-se sobretudo em determinados aspectos específicos do anteprojecto posto à discussão. Sendo inegável o interesse e a importância dessas análises, também se revela importante adoptar uma perspectiva mais geral e procurar determinar algumas grandes linhas do anteprojecto. Em recente intervenção (cuja síntese se encontra aqui), referi seis grandes linhas, ou orientações fundamentais, que me parecem resultar das soluções concretas propostas e que, de certo modo, uma vez autonomizadas, também ajudam na compreensão dessas mesmas soluções.
Em seguida apresento, de forma sintética, aqueles que me parecem ser estes princípios estruturantes, fornecendo algumas ilustrações (complementadas por outros exemplos que refiro na dita apresentação).
- Continuidade em muitos pontos e soluções novas moderadas. Um aspecto central do anteprojecto é o facto de manter continuidade em muitos pontos, nos quais a doutrina e a prática foram assentando e que seria profundamente negativo pôr em causa. Em qualquer debate que se faça sobre o anteprojecto, não pode ignorar-se a importância da estabilidade regulatória. Além desse aspecto, que já expressa uma ideia de moderação, como tentativa de não introduzir rupturas desnecessárias, o anteprojecto expressa, em muitos casos, a procura de soluções que atinjam um equilíbrio entre diferentes exigências, tentando que a garantia da posição dos concorrentes não ocorra à custa do sacrifício excessivo da autonomia das entidades adjudicantes.
- Simplificação das regras e do sistema do Código. O propósito de simplificação manifesta-se em duas dimensões: por um lado, há diversos acertos ou alterações clarificadoras a regras existentes do CCP, como nos artigos referentes ao âmbito objectivo de aplicação da parte II (aqui podemos falar em simplificação normativa); por outro lado, há novidades de regime dirigidas à simplificação e flexibilização dos procedimentos propriamente ditos (simplificação procedimental), algumas resultantes das directivas, como a redução de prazos de elaboração de propostas, outras resultantes de opções próprias, como a extensão do ajuste directo simplificado e do concurso público urgente aos contratos de empreitada.
- Integração da tecnologia e inovação. Esta linha estruturante do anteprojecto manifesta-se em diversos aspectos: o anteprojecto não se limitou a transpor os mecanismos a este respeito previstos nas directivas (catálogos electrónicos, parcerias para a inovação), propondo também soluções como a utilização de plataformas electrónicas nos procedimentos de ajuste directo e consulta prévia (ainda que sujeita a amplo período transitório: mais uma manifestação de moderação e realismo), ou regras de execução contratual específicas que reconhecem a especificidade dos contratos com forte componente de inovação.
- Rigor nos procedimentos e na gestão dos contratos. O anteprojecto contém diversas regras que estabelecem um quadro de actuação exigente na defesa do interesse público e na promoção da concorrência: são exemplos a redução do valor do ajuste directo e a autonomização da consulta prévia, a obrigação de a entidade adjudicante deixar expressas as razões que a levam a definir certos elementos centrais das peças (preço base, preço ou custo anormalmente baixo e outros), um regime de modificações mais restritivo do que seria permitido pelas directivas, e a previsão da figura do gestor de contrato.
- Preocupação com o aumento da diversidade do lado da oferta (PME e não só). Múltiplas opções – novamente, não apenas impostas pelas directivas, mas também de iniciativa nacional – concretizam o propósito de aumentar o acesso aos contratos públicos, em benefício das PME, mas não só. Esse é um dos sentidos da já referida autonomização da consulta prévia. O aproveitamento das possibilidades dadas pelas directivas em matéria de reserva de contratos a certas entidades, ou a previsão de uma excepção à vinculação a acordos quadro em caso de poupança significativa disponível fora do mesmo, ou ainda a recuperação (também permitida pelas directivas) do pagamento directo a subcontratados, concorrem também no sentido de tornar a participação em procedimentos de formação de contratos públicos mais atractiva para as PME.
- Preocupação de enfrentar, de modo efectivo, problemas delicados do sistema. Neste último tópico, verifica-se que o anteprojecto não se furtou a enfrentar diversas questões delicadas, resultantes quer das directivas, quer da prática da aplicação do CCP nos últimos anos. Em muitos aspectos em que as directivas lançam o desafio, mas não concretizam a solução, e a maioria dos Estados Membros optou por uma simples transcrição das normas, o anteprojecto compromete-se com soluções que procuram densificar os regimes e desse modo auxiliar as entidades adjudicantes: por exemplo, a descrição exemplificativa de medidas alternativas à exclusão por conflitos de interesses, ou um regime claro e seguro (ainda que possa ser discutida a opção e aperfeiçoada a redacção) quanto à exclusão por mau desempenho em contratos anteriores. Além disso, o anteprojecto também não se furtou a tomar posição sobre outros temas, igualmente delicados, sendo exemplos disso a opção de permitir a sanação de irregularidades formais das propostas e candidaturas, a maior protecção do interesse público na decisão de não adjudicação e a previsão da figura da caducidade da adjudicação, ou o enfrentar de alguns efeitos perniciosos trazidos pelo modelo de centralização de compras, problema por todos sentido como relevante (como bem se viu na discussão pública).
MAR