são várias as alterações que o Anteprojeto de Revisão do CCP se propõe introduzir em matéria de invalidade do contrato. tem sido um capítulo menos debatido durante este período de discussão pública – mais centrada nas alterações projetadas para a fase de formação dos contratos -, mas essencial, sobretudo sob o eixo da arquitetura daquilo que se possa entender como uma «sistema de invalidades no Direito Administrativo».
de entre esse conjunto de alterações, contam-se algumas positivas, outras menos boas e outras ainda inexplicáveis. o texto refere-se, de modo telegráfico, a apenas quatro aspetos que emergem desse conjunto de alterações.
[A] a primeira boa notícia assenta na circunstância de o Anteprojeto finalmente vir a resolver a aporia que se traduzia no facto de – aparentemente – as causas e o regime de invalidade previstos nos artigos 283.º a 285.º apenas valerem para os contratos administrativos (que se sabe serem apenas uma espécie da categoria mais vasta «contratos públicos»). essa aporia resultava em diferentes disfunções: (i) desde logo, por criar um aparente «vazio» no tocante ao regime de invalidade dos contratos públicos que não fossem qualificáveis como administrativos; (ii) noutro plano, por esse «vazio» ser dificilmente articulável com o que então se dispunha na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. o novo n.º 3 do artigo 280.º e a nova redação projetada para o n.º 2 do artigo 285.º (entre outras benfeitorias mais sectoriais) resolvem, no bom sentido, a aporia: as normas sobre invalidade previstas no CCP valem, portanto, para qualquer contrato público, isto é, para qualquer contrato que seja celebrado por uma entidade adjudicante e sujeito à Parte II do Código.
[B] no que respeita à invalidade consequente (artigo 283.º), o Anteprojeto introduz duas alterações: ambas criticáveis.
(a) alteram-se, em primeiro lugar, os termos do funcionamento da «regra do paralelismo» na hipótese de anulação ou anulabilidade dos atos procedimentais: mantendo-se a regra de que o contrato é anulável se tiverem sido anulados ou forem anuláveis os atos procedimentais em que tenha assentado o contrato, acrescenta-se, no n.º 2 do artigo 283.º, a exigência de o vício (do ato procedimental) determinar a invalidade do contrato, apresentando-se como exemplos a circunstância de essa invalidade resultar numa modificação subjetiva do contrato celebrado ou numa alteração do seu conteúdo essencial. é uma alteração que não se compreende e que assenta dois equívocos fundamentais.
- desde logo, parte de um princípio totalmente errado: o de que só alguns vícios de atos procedimentais é que possuem aptidão para determinar a invalidade do contrato correspondente, esquecendo-se, porém, que a estrutura procedimentalizada da formação dos contratos públicos leva a que, por definição, qualquer invalidade no processo de formação determine a invalidade consequente do contrato – essa é uma ideia assente no regime de invalidade dos atos ou dos regulamentos, que ninguém parece contestar no Direito Administrativo português, mas que o Anteprojeto de Revisão coloca agora em causa em matéria contratual. ao estabelecer que o contrato é anulável sempre que seja anulado ou seja anulável um ato procedimental caso se demonstre que o vício (do ato procedimental) determina a invalidade do contrato, o novo n.º 2 do artigo 283.º oferece ao intérprete a conclusão de que (i) há alguns vícios procedimentais (determinativos da anulabilidade dos respetivos atos pré-contratuais) que possuem aptidão para gerar a anulabilidade do contratos não possuem aptidão intrínseca para determinar a anulabilidade do contrato e (ii) há outros vícios procedimentais que não possuem essa aptidão. a invalidade consequente passa, por isso, a ser uma consequência contingente e dependente do tipo de invalidade do ato procedimental anterior, sem que o artigo 283.º aponte qualquer critério que permita diferenciar uns casos de outros. para além de criticável em si mesma, a alteração é dificilmente compatível com os quadros gerais do «sistema de invalidades» do DA português, salvo se a intenção for a de degradar a maioria das ilegalidades procedimentais em causas geradoras daquilo que tradicionalmente se entende por «irregularidades» (isto é, ilegalidades não invalidantes). é certo que se poderia dizer que a solução corresponde à importação da «filosofia» que subjaz ao regime do n.º 5 do artigo 163.º do CPA, disposição que, como é sabido, introduz hipóteses (alargadas) de não-anulabilidade de atos administrativos. mas, para além de todas as críticas que essa disposição merece, e que não interessa retomar, sempre importa ter em conta que, (i) por um lado, o «princípio» de que parte o CPA é o inverso do que parece partir agora o n.º 2 do artigo 283.º: todas as ilegalidades procedimentais geram, em regra, a anulabilidade do ato administrativo, sendo excecionais os casos em que isso não ocorre; de acordo com o Anteprojeto de Revisão do CCP, o princípio é o de que as ilegalidades procedimentais apenas geram a invalidade do contrato… se o vício que afetar o ato procedimental determinar a invalidade do contrato; (ii) por outro lado, registe-se que o afastamento ex lege do efeito anulatório previsto no n.º 5 do artigo 163.º do CPA também vale para os atos pré-contratuais, o que significa que a solução proposta pelo Anteprojeto significa um plus em relação ao que já resulta do CPA. o que o acrescento ao n.º 2 do artigo 283.º vem introduzir é, verdadeiramente, um «segundo degrau» de afastamento ex lege do efeito anulatório. nestes termos, um ato pré-contratual anulável e que ainda assim “passe” os testes do n.º 5 do artigo 163.º do CPA apenas comunica a sua anulabilidade ao contrato, caso se demonstre que o vício determina a invalidade do contrato, sem que o Anteprojeto avance qualquer critério certo para determinar em que situações é que isto ocorre.
- mas, sobretudo, este acrescento ao n.º 2 do artigo 283.º parece assentar numa enormíssima confusão de planos entre o n.º 2 (que deveria servir para determinar quando é que um contrato é anulável) e o n.º 4 (que estabelece casos em que a anulabilidade do contrato pode ser afastada). ao exemplificar casos em que a anulabilidade dos atos procedimentais gera a anulabilidade do contrato (modificação subjetiva, alteração do seu conteúdo essencial), o n.º 2 parece intrometer-se no domínio das hipóteses de (possibilidade de) afastamento do efeito anulatório (o que é desde logo visível pela importação da terminologia do n.º 4 para o n.º 2). mas é preciso ter em conta que estamos diante de aspetos que não se confundem: a anulabilidade (propriedade dispositiva de um ato jurídico que possa ser anulado) é uma coisa; as condições para a sua efetiva anulação, e eventuais «exceções», outra. ao confundir os planos, o Antprojeto baralha o intérprete e distorce o sistema. só para destacar o aspeto mais impressivo que resulta desta confusão de planos, note-se que parte do n.º 4 deixa agora de fazer sentido: na parte em que habilita o afastamento do efeito anulatório “quando se demonstre inequivocamente que o vício não implicaria uma modificação subejtiva no contrato celebrado num uma alteração do seu conteúdo essencial”, a norma contida no n.º 4 deixa de ter objeto – é que, nessas hipóteses, à luz do n.º 2, não há sequer qualquer anulabilidade, não sendo por isso logicamente possível afastar o efeito anulatório de um contrato que não é, à partida, anulável.
(b) ainda quanto ao regime da invalidade consequente, o Anteprojeto propõe a revogação do atual n.º 3 do artigo 283.º, mas novamente sem explicação atendível. é verdade que a fraseologia do n.º 3 não era famosa, sobretudo na parte em que apelava à «consolidação» na ordem jurídica de atos anuláveis não anulados. mas o princípio subjacente à solução era relativamente evidente: a circunstância de a não-anulabilidade do ato procedimental (designadamente, por decurso do prazo de impugnação) implicar a não anulabilidade do contrato correspondente é nada mais nada menos do que o reverso da regra (que o Anteprojeto aparentemente quer afastar, como se viu, mas erradamente) de que a anulabilidade do ato procedimental determina a anulabilidade do contrato. ao contrário da alteração ao n.º 2, porém, esta revogação do n.º 3 não importa consequências de maior: em rigor, a regra de que a não-anulabilidade do ato implica a não-anulabilidade do contrato já resulta (e já resultava) da parte inicial do n.º 2; o papel do n.º 3 era, por isso, meramente explicativo. mas nem por isso inútil.
[C] já em matéria de invalidade própria do contrato (artigo 284.º), há a registar uma alteração principal: em linha com o CPA/2015, o Anteprojeto de Revisão elimina, no n.º 2, aquele que era o último reduto das «cláusulas gerais de nulidade» do DA português: elimina-se a referência à nulidade do contrato “por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo” e introduz-se uma exemplificação (não-taxativa) de causas de nulidade própria do contrato. sem que interesse discutir a justeza estrutural desta alteração estrutural (à luz do CPA/2015, é uma discussão já relativamente perdida…), sempre importa, quanto à proposta do Anteprojeto, referir o seguinte: as alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo 285.º são puras transcrições de alguamas alíneas do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, não se vislumbrando com clareza qual a utilidade de o CCP estabelecer a aplicabilidade de todas as causas de nulidade previstas no artigo 161.º do CPA, mas depois se dedicar a transcrever apenas algumas delas, o que pode criar a impressão (errada) de que as outras causas de nulidade previstas no artigo 161.º não se aplicam aos contratos. tendo em conta que, em bom rigor, apenas as alíneas g) e h) constituem causas «específicas» de nulidade própria dos contratos públicos, talvez a legística não ficasse a perder com a eliminação da lista que integra o n.º 2 (que passaria a dispor apenas que “os contratos são nulos quando se verifique algum dos fundamentos previstos no presente Código, no artigo 161.º do CPA ou em lei especial”) e com a autonomização de um novo n.º em que se acrescentassem as hipóteses previstas naquelas alíneas f) e g) (“são ainda nulos os contratos que…”). a respeito da alínea f) – o contrato será nulo se tiver sido celebrado com alteração dos elementos essenciais das peças do procedimento que devessem constar do respetivo clausulado -, importa por fim ter em conta que o seu alcance parece não ser totalmente coincidente com a situação específica de nulidade agora também inovatoriamente prevista no n.º 7 do artigo 96.º. é verdade que se apela, em ambas as disposições a “elementos essenciais”, mas não parece que sejam coincidentes: na alínea f) estão em causa elementos essenciais das peças do procedimento (o que convoca a discussão em torno do que é e o que não essencial…), no n.º 7 do artigo 96.º estão em causa elementos essenciais que o Código expressamente identifica (os referidos nas alíneas a) a i) do n.º 1), muitos dos quais nem decorrem das peças do procedimento. haveria, aliás, algo a dizer sobre a causa nulidade agora prevista neste n.º 7 do artigo 96.º, mas talvez fique para outro texto.
[D] um último aspeto: o Anteprojeto introduz um novo n.º 4 ao artigo 285.º, destinado a «reforçar» (embora sem utilidade visível…) a cláusula de afastamento do efeito anulatório já prevista no n.º 4 do artigo 283.º. mas, para além de algumas deficiências redação (interesses públicos e privados e não interesses público e privado), esta nova disposição convoca uma interessante questão: nos termos do n.º 4 do artigo 283.º, o afastamento poderá ser determinado por decisão judicial ou arbitral; nos termos deste novo n.º 4 do artigo 285.º, apenas pode ser determinado por decisão judicial. são bem conhecidas as propostas de eliminar a possibilidade de afastamento do efeito anulatório por decisão arbitral (cfr., por último, M. J. Estorninho, in CJA, n.º 118, p. 9); mas, das duas uma: ou o Código assume que esse poder de afastamento não pode ser mobilizado por árbitros em qualquer caso; ou assume que pode. determinar que pode ser mobilizado por árbitros nuns casos, mas não noutros, é que já é mais discutível. em qualquer caso, como se disse, é a própria utilidade deste acrescento ao artigo 285.º que está em causa: em bom rigor, nada aí se acrescenta em relação ao que já estabelece o n.º 4 do artigo 283.º. a não ser a apontada contradição a respeito da possibilidade de afastamento do efeito anulatório por decisão arbitral.
Caro José, uma nota muito rápida: não detecto qualquer novidade significativa na alteração proposta para o 283º/2. Aquilo que designas como um “equívoco fundamental”, o “princípio totalmente errado” de que “só alguns vícios de atos procedimentais é que possuem aptidão para determinar a invalidade do contrato correspondente”, e que, segundo também afirmas, o anteprojeto “agora” viria consagrar, com a consequência de que “a invalidade consequente passa, por isso, a ser uma consequência contingente e dependente do tipo de invalidade do ato procedimental anterior”, provavelmente vigora, sem interrupção, na ordem jurídica portuguesa, pelo menos desde 1996, data em que foi alterado o artigo 185º do CPA; em concreto releva o nº 1, que passou então a falar de “actos administrativos de que haja dependido a sua celebração”. Este conceito foi substituído, em 2008, pelo conceito de actos em que tenha assentado a celebração, mas sem perda do sentido essencial: há de facto invalidades procedimentais que não se transmitem ao contrato. Não é tanto, ou não é só, uma questão de degradação de formalidades em não essenciais; é uma simples questão de relação causa-efeito, de nexo de conexão relevante e suficiente entre vícios e desvalores do acto e do contrato; o contrato pode escapar a, ou ultrapassar, algumas invalidades procedimentais (podemos discutir exemplos, se quiseres). Embora a redacção do CPA e do CCP dê margem a diferentes interpretações, isto está bem explicado pelos muitos autores que entre nós defendem, ou defenderam (não só “de jure condendo” mas “de jure condito”), o tal “princípio totalmente errado”, desde os 90′ e até aos dias de hoje: Jorge Pereira da Silva, Maria João Estorninho, Alexandra Leitão, Pedro Gonçalves, Pacheco de Amorim, Ana Raquel Gonçalves Moniz, Raquel Carvalho… mas há mais. Arrisco dizer que se pode falar num consenso doutrinal. E jurisprudencial, já agora. Não digo isto para me valer de argumentos de autoridade, mas apenas para salientar o carácter verdadeiramente não inovador; banal; bem inserido na nossa tradição jurídica; e razoável, daquilo que está proposto no 283º/2 no anteprojecto. Um abraço!
CurtirCurtido por 2 pessoas
miguel,
sei que fui demasiadamente «impetuoso» e por isso tenho que defender a «minha dama», designadamente em função de alguns excessos de discurso… mas vamos a isso!
o teu comentário alerta para uma ambiguidade do meu texto, que assinalo e agora corrijo. é verdade que nem todas as invalidades procedimentais pré-contratuais se comunicam ao contrato, na medida em que o direito português faz apelo ao conceito de «acto que em que tenha assentado a celebração». tens toda a razão nesses ponto e o texto, nas passagens em que omita esse aspeto, não está claro. quando eu refiro os «atos procedimentais» estou sempre a falar dos «atos procedimentais em que tenha assentado a celebração» – à luz do Direito português, são apenas esses que contam em matéria de invalidade consequente. mas, de facto, não sou claro quanto a esse aspeto e o teu comentário vem muito justamente sublinhar essa ambiguidade.
assente este ponto, não me parece que se afaste a crítica.
o que o acrescento ao n.º 2 do artigo 283.º vem trazer é, de facto, algo de novo. à luz do direito vigente, qualquer contrato que assente (independentemente da intensidade que seja de atribuir a esta relação de pressuposição) num ato procedimental anulável é também ele anulável. à luz do que propõe o Anteprojeto, isso não será assim: um contrato assenta num ato pré-contratual anulável, mas só será anulável “se o vício determina[r] a invalidade do contrato”. ou seja:
(1) à luz do direito vigente, a invalidade derivada depende de uma condição: a invalidade de um ato procedimental em que tenha assentado a celebração do contrato;
(2) de acordo com o Anteprojeto, a invalidade derivada depende de duas condições: a invalidade de um ato procedimental em que tenha assentado a celebração do contrato + essa invalidade determinar a invalidade do contrato (avançando-se depois na exemplificação de dois casos – modificação subjetiva, alteração do conteúdo essencial).
de acordo com o que dizes, a nova redação do n.º 2 apenas teria vindo reforçar a ideia de que nem todas as invalidades de atos pré-contratuais resultam em invalidades consequentes do contrato. mas, para isso, já basta o apelo ao conceito de “atos em que tenha assentado” a celebração do contrato! repara que o n.º 2 do artigo 283.º não apresenta o acrescento que começa a seguir à vírgula como uma explicação do que sejam esses atos em que tenha assentado a celebração. tudo o que vem a seguir a vírgula surge como uma condição adicional a esse requisito – a utilização do «e» logo após a vírgula é inequívoco nesse sentido.
posso estar a ser demasiado quadradão, mas como está a parte final do n.º 2 do artigo 283.º é verdadeiramente inovadora e coloca em causa a forma como até agora funcionava a regra do paralelismo nas hipóteses de anulabilidade procedimental. o que no direito português sempre se discutiu foi, de facto, como dizes, saber que invalidades pré-contratuais teriam o condão de se repercutir na invalidade do contrato. é isso que se discute nas aproximações ao que possa entender-se por “ato em que tenha assentado” a celebração. tudo isso está certo e não ponho em causa. mas renovo: tal como está construído, o n.º 2 do artigo 283.º adiciona um requisito adicional, do qual resulta o que digo no texto, mas eventualmente não com o rigor que pretendia: se vingar a redação do Anteprojeto, o que o Direito português passará a dispor é que:
(i) há alguns atos anuláveis em que tenha assentado o contrato que determinam a anulabilidade do contrato;
(ii) mas há outros atos anuláveis em tenha assentado a celebração do contrato que não determinam a invalidade do contrato.
não me parece que em passo nenhum da literatura nacional se tenha afirmado, pelo menos de iure condito, que um contrato cuja celebração tenha assentado num ato anulável não é, ainda assim, anulável. porque o direito português (o do CPA e o do CCP) não consentiriam esta afirmação. pelo menos até agora.
dir-me-ás que todo o acrescento ao n.º 2 do artigo 283.º do CCP teve apenas um propósito explicativo, destinando-se a oferecer diretrizes sobre o que seja e o que não seja um “ato em que tenha assentado” a celebração do contrato. reafirmo que não é isso que resulta do enunciado. a ser assim, porém, toda a minha primeira crítica ao n.º 2 do artigo 283.º do CCP é formal – se o propósito é oferecer um critério para a identificação dos “atos em que tenha assentado”, ainda que indiciário, era necessária uma redação alternativa à segunda parte deste n.º 2. se assim for, portanto, tudo o que digo no ponto 1. da alínea (a) do ponto [A] do meu texto deverá ser relido com uma crítica de pura legística.
em todo o caso, tudo isto não obnubila a segunda linha de crítica que movo à nova redação do n.º 2: parece-me inafastável a relativa confusão de planos entre a determinação das situações de anulabilidade e a cláusula de afastamento do efeito anulatório do n.º 4. dito de outro modo: parece-me que o que se quis salvaguardar com o acrescento ao n.º 2 já seria satisfatoriamente obtido através do n.º 4.
é ou não é verdade que com a nova redação do n.º 2 parte do n.º 4 perde objeto? se um contrato assentou (novamente: independentemente do que se entenda ser essa relação de pressuposição) num ato procedimental anulável, mas se sem esse vício (do ato) o contrato não sofreria qualquer modificação subjetiva ou qualquer alteração do seu conteúdo essencial, o n.º 2 determina que o contrato não é anulável. mas parte do n.º 4 destina-se a estabelecer que a anulabilidade do contrato pode ser afastada sempre que o vício do ato procedimental não fosse de molde a gerar uma modificação subjetiva ou alteração do conteúdo essencial do contrato – o que pressupõe, como dado de partida, que esse contrato fosse anulável. a coisa não joga uma com a outra.
mas volto sublinhar duas coisas essenciais: sou um quadradão (aquilo que em termos mais refinados se costuma chamar por «formalista») e o texto tem de facto partes ambíguas. quanto a este último aspeto, o teu comentário é por isso esclarecedor e muito útil!
obrigado e abraço!
CurtirCurtido por 1 pessoa
É isso: a 2ª parte do 283º/2 explica a primeira, sem carácter inovador. Podemos discutir se a formulação é feliz, mas uma leitura sistematicamente integrada daquela proposta à luz da doutrina resolve. E porque é que se torna útil (uma benfeitoria útil) a 2ª parte do 283º/2? Precisamente porque a prática do 185º/1 CPA e 283º/2 CCP mostra que por vezes há dúvidas sobre se a relação de pressuposição é meramente “cronológica” ou se é algo mais.
A questão que levantas quanto à articulação 283º/2 e 4 é relevante. A minha opinião é que a confusão de planos a que aludes radica no 283º/4 na sua redacção actual. Com efeito, uma coisa é afastar, por motivo de interesse público, um efeito anulatório de um contrato que já se considerou inválido (1ª parte do 283º/4). Outra coisa é dizer que um contrato não é inválido porque o co-contratante seria o mesmo (283º/4, 2ª parte). É a redacção actual que já trata as duas coisas como se fossem uma (salvo erro, Pacheco de Amorim já tinha identificado este problema). Diga-se, em abono da verdade, que a distinção é de filigrana e no essencial, traduz-se em saber se se dá ao juiz uma faculdade autónoma de ponderação, ou se é a própria lei que quer afastar o efeito anulatório.
A ser assim (a existir já esta confusão de planos na redacção actual do 283º/4), o anteprojecto vem, no 283º/2, resolver dois problemas: um, de clareza do regime, outro, de localização sistemática – exigindo, parece, para que isto fique coerente, um acerto da redacção do 283º/4.
Um abraço
CurtirCurtido por 3 pessoas
A SANÇÃO PECUNIÁRIA POR INCUMPRIMENTO DA CLÁUSULA STANDSTILL
Na sequência de jurisprudência recente, deixo aqui algumas linhas de reflexão sobre o tema. Para mais fácil exposição e compreensão, começo por enquadrar a situação no CCP.
A outorga do contrato ou o início da sua execução não deve ter lugar antes de decorridos 10 dias contados da data da notificação da decisão de adjudicação a todos os concorrentes, conforme previsto, respetivamente, na alínea a) n.º 1 do art.º 104.º e n.º 3 do art.º 95.º, ambos do Código dos Contratos Públicos (CCP). (1)
Esta regra, denominada de cláusula standstill, que obriga a entidade adjudicante a suspender a assinatura e execução do contrato durante um determinado prazo, visa garantir, aos concorrentes vencidos no procedimento adjudicatório e interessados no contrato, a utilização dos meios impugnatórios contenciosos.(2)
A violação da cláusula standstill conduz à ineficácia do contrato celebrado, nos termos da alínea b) n.º 5 do art.º 287.º do CCP. Esta privação dos efeitos do contrato pode ser afastada por decisão judicial ou arbitral, com base nos fundamentos previstos no n.º 4 do artigo 283.º do CCP. Neste caso, serão impostas sanções: a redução da duração do contrato, ou uma sanção pecuniária de montante inferior ou igual ao preço contratual, conforme previsto no n.º 7 do art.º 287.º do CCP.
A norma não estabelece quem paga e a quem é entregue o dinheiro. Ultimamente, a coberto da discricionariedade conferida, o Tribunal Central Administrativo Norte, enveredou por uma sanção pecuniária de 25 000 euros à entidade adjudicante para “compensar a perda de oportunidade” de um operador económico. (3)
Não pretendo aqui vasculhar o mérito da decisão (de difícil julgamento, como também reconheceu o tribunal), embora os pressupostos em que assentou e a forma como foram abordados não seja um assunto encerrado – é questionável o proferido naquele acórdão.
Lançando um olhar aos requisitos que devem suportar a sanção pecuniária ressalta o facto que esta deve ser “de montante inferior ou igual ao preço contratual”, como vimos na alínea b) do n.º 7 do art.º 287.º do CCP.
Deste modo, a ponderação sobre o preço contratual pesa para determinar o valor da sanção. A dimensão daquele busca-se nas circunstâncias casuísticas. O preço contratual de referência não deve ser superior à expetativa de adjudicação. Por isso, num procedimento em que a adjudicação seja por lotes apenas os que possam ser afetados pelo vício procedimental devem ser considerados. Se assim não for, corre-se o risco do valor que serve de parâmetro (preço contratual) vir a ser superior ao que seria possível na adjudicação da proposta de um concorrente. Seria inflacionar o material de ponderação e potenciar um juízo acusatório com desprezo pelo pressuposto da proporcionalidade – este, não esqueçamos, é uma exigência do legislador europeu. (4)
Todavia, com esta amplitude (igualar o preço contratual), poderá assemelhar-se a uma indemnização, situação discutível quando o caminho parece apontar unicamente na direção da punição pecuniária ao infrator, perante o disposto no n.º 2 do art.º 2.º-E da Diretiva 2007/66/CE.
Sendo uma penalização imposta ao infrator, então recai na entidade adjudicante (sobre aquele que tomou a decisão) a responsabilidade pelo incumprimento da cláusula standstill. Mas poderá a imputabilidade estender-se ao adjudicatário? Repare-se que este, na fase da adjudicação, é notificado do prazo de suspensão obrigatório, e é-lhe posteriormente comunicada a data em que ocorrerá a outorga do contrato, nos termos, respetivamente, do n.º 1 do art.º 77.º e alínea a) n.º 3 do art.º 104.º do CCP.
Acresce, o facto, que um contrato administrativo não é uma união solitária, um vínculo unilateral. (5) Assim, na verdade, quem escapa ao cumprimento são ambas as partes. Forma-se um ambiente de culpa partilhada. Neste contexto, merece meditação, o facto do adjudicatário que beneficie de um ato de adjudicação ilegal poder ser alvo de um juízo de imputabilidade com consequências sancionatórias às aqui em apreço. Aparentemente, o n.º 2 do art.º 2.º-E da Diretiva 2007/66/CE, direciona somente para a entidade adjudicante; não obstante (na parte final) empurra os Estados-Membros a conferir “amplos poderes discricionários” à instância de recurso encarregue da aplicação da sanção – que em Portugal é por via de decisão judicial ou arbitral. (6)
A propósito, na Hungria, a situação foi discutida nos tribunais. O julgamento foi no sentido que a sanção alternativa é imposta à entidade adjudicante, não havendo lugar para aplicá-la ao cocontratante; não há possibilidade de responsabilidade conjunta e solidária (multas) contra o parceiro contratual. Defendeu, que tal pode deduzir-se, nomeadamente, do âmbito subjetivo da diretiva comunitária. (7) Apesar do preconizado, com similitudes neste domínio, foi apresentado no Tribunal de Justiça, no dia 28 de março de 2019, um pedido de decisão prejudicial, Processo C-263/19. (8)
A situação também é pertinente quanto à possibilidade de cumular as duas sanções: redução da duração do contrato e sanção pecuniária. Claramente, a previsão do n.º 7 do art.º 287.º do CCP, é a via alternativa. Porém, “escolher” uma ou outra não é a mesma coisa, têm impactos dissemelhantes. A redução mexe no objeto que satisfaz o interesse público e castiga o cocontratante; a sanção pecuniária penaliza a entidade adjudicante.
Face a isto – considerando a obrigatoriedade de aplicar as sanções – que legitimidade existe de fixar as duas? Em Itália, como veremos a seguir, a modalidade adotada permite a cumulação das sanções.
A meu ver, a determinação da sanção, quem tem que a suportar e qual o seu destino, justificava a intervenção do legislador português de uma forma mais assertiva. Incumbência dada, insisto, no considerando (19) da Diretiva 2007/66/CE: “Compete aos Estados-Membros determinar as modalidades das sanções alternativas e as respectivas regras de aplicação.”.
Em Itália, por exemplo, está previsto na alínea a) n.º 1 do art.º 123.º do Codice del Processo Amministrativo (CPA), uma multa fixada com base numa percentagem de
0,5 % a 5% do preço contratual, sendo o respetivo montante entregue ao Estado – indo ao pormenor de indicar o capítulo do Orçamento onde é imputado. O referido artigo estabelece ainda outras regras relativas à sanção, v.g., prazo pagamento, e no n.º 2, um dado interessante a valorizar na determinação da sanção: o trabalho realizado pela entidade adjudicante para eliminar ou atenuar as consequências da violação. (curioso – vem à memória as medidas self-cleaning dos impedimentos). (9)
Já em França, relativamente à violação da cláusula standstill – prevista no
artigo R. 2182-1 Code de la Commande Publique (CCP) (10) – o valor da sanção financeira não pode ultrapassar 20% e o destino é igualmente os cofres do Estado, nos termos do art.º L 551-20 e art.º L 551-22 do Code de Justice Administrative. (11) E, onde, no início do ano, o Tribunal impôs uma sanção pecuniária, igualmente de 20 000 euros, a uma entidade adjudicante que não respeitou o prazo de suspensão para assinatura do contrato. (12)
Na Finlândia o valor da penalidade não pode exceder 10% do valor do contrato – a pagar ao Estado -, e tem uma regra que define a quem é imputada a sanção no âmbito da contratação centralizada, ex vi, art.º 158.º e art.º 160.º, da Lei sobre Compras Públicas e Concessões. (13)
Regressemos a Portugal. O disposto no nosso ordenamento: “sanção pecuniária de montante inferior ou igual ao preço contratual” – dito desta forma e em meia dúzia de palavras -, foge ao plasmado na “Diretiva Recursos”; exige um juiz criativo, atirando-o para os terrenos da Assembleia, e a ter que fazer uso do direito que ele próprio molda; somem-se as condições para realizar a “acostumada justiça” – solta-se a ameaça da conformidade constitucional.
Assim, na parte relativa à sanção pecuniária, a norma do art.º 287.º do CCP é curta, insuficiente – pode e deve ser mais expressiva para que possa ser aplicada com a segurança jurídica adequada, dentro dos muros da legalidade. (14) O rumo de iure condendo deverá ser outro, porventura, olhando para o estrangeiro, para melhores práticas, crescidas em terrenos mais pisados.
Mas, em tudo isto, a reter pelas as entidades adjudicantes, algo sério emerge. A assinatura e execução prematura do contrato tem um preço que poderá ser alto – e cujos protagonistas, os que praticam concretamente o ato, estão expostos ao regime da responsabilidade financeira correspondente. (15)
_______________________
(1) Sem prejuízo das exceções contidas no n.º 4 do art.º 95.º e n.º 2 do art.º 104.º do CCP.
(2) Cfr. Considerando (17), o n.º 3 do art.º 1.º e alínea b) n.º 1 do art.º 2.º-D, da Diretiva 2007/66/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Dezembro de 2007, disponível:
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32007L0066#d1e561-31-1
(3) Acórdão do TCAN, de 29/03/2019, Processo: 01992/16.3BEPRT (Relator: Helena Canelas)
Acórdão do TCAN, de 09/06/2017, Processo: 01992/16.3BEPRT (Relator: Joaquim Cruzeiro)
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/00f95752db978d8080258407004d1a6d?OpenDocument
(4) Cfr. n.º 2 do art.º 2.º-E da Diretiva 2007/66/CE.
(5) Cfr. n.º 1 do art.º 280.º do CCP. Sem esquecer também os princípios fundamentais da execução contratual consagrados no art.º 286.º do CCP – boa-fé e interesse público.
(6) Também, a menção, in fine, considerando 19, da Diretiva 2007/66/CE, de que a determinação da modalidade da sanção e regras de aplicação fica a cargo dos Estados-Membros.
(7) Acórdão do Tribunal Geral de Eger, 2.Gf.20.233 / 2017/6, de 30 de novembro de 2017 – Disponível no Portal da Autoridade de Contratação Pública:
https://www.kozbeszerzes.hu/ertesito/2018/34/megtekint/portal_2774_2018/
https://www.kozbeszerzes.hu/adatbazis/keres/dbhatarozat/
Acórdão do Tribunal Geral de Eger, 2.Gf.20.274 / 2017/4 – Disponível no Portal da Autoridade de Contratação Pública:
https://www.kozbeszerzes.hu/ertesito/2018/16/megtekint/portal_0853_2018/
https://www.kozbeszerzes.hu/adatbazis/keres/dbhatarozat/
(8) Cfr. Jornal Oficial da União Europeia, C 206/32, de 17/06/2019
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:62019CN0263
(9) Cfr. art.º 123.º do CPA – disponível no endereço:
https://www.normattiva.it/uri-res/N2Ls?urn:nir:stato:decreto.legislativo:2010-07-02;104!vig=
https://www.normattiva.it/
(10) Cfr. CCP no endereço:
https://www.legifrance.gouv.fr/affichCodeArticle.do;jsessionid=6D5DFC3B2CA60F54D7E8818096A1C802.tplgfr22s_1?cidTexte=LEGITEXT000037701019&idArticle=LEGIARTI000037729989&dateTexte=20190717&categorieLien=cid#LEGIARTI000037729989
https://www.legifrance.gouv.fr/rechCodeArticle.do?reprise=true&page=1
(11) Cfr. Code de Justice Administrative – disponível no endereço:
https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do;jsessionid=6D5DFC3B2CA60F54D7E8818096A1C802.tplgfr22s_1?cidTexte=LEGITEXT000006070933&dateTexte=20191101
https://www.legifrance.gouv.fr/initRechCodeArticle.do
(12) Conseil d’État, 25 janvier 2019, n.º 423159 – Disponível em:
https://www.legifrance.gouv.fr/initRechJuriAdmin.do
https://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriAdmin.do?oldAction=rechJuriAdmin&idTexte=CETATEXT000038077357&fastReqId=1847031870&fastPos=1
(13) Lei n.º 1397, de 29-12-2016, que implementou no ordenamento jurídico daquele país nórdico a Diretiva 2014/24/UE, Diretiva 2014/23/UE, Diretiva 89/665/CEE e Diretiva 2007/66 /CE
https://www.finlex.fi/fi/laki/
(14) Na promoção do desejável – nem sempre fácil – equilíbrio entre legalidade e segurança jurídica no direito da EU. (Sobre o tema o interessante discurso do Professor José Luís da Cruz Vilaça “Legalidade e segurança jurídica no direito europeu e direito comparado”, proferido no Conseil d’État, em França, no dia 16 novembro de 2018.
https://www.conseil-etat.fr/
https://www.conseil-etat.fr/actualites/discours-et-interventions/entretiens-du-contentieux-du-conseil-d-etat-premiere-table-ronde-intervention-de-jose-luis-da-cruz-vilaca
(15) O sinal está dado e acompanha o posicionamento do legislador europeu: as sanções devem ser efetivas e dissuasivas – n.º 2 do art.º 2.º-E da Diretiva 2007/66/CE.
CurtirCurtir