1. Uma das novidades do anteprojecto de revisão são as alterações propostas para o regime do preço base.
2. A primeira alteração consiste na afirmação de um dever de estabelecimento do preço base (artigo 47º/1), coisa que não existe na redacção actual. Clarifica-se também que o preço base abrange as eventuais renovações (aspecto que por vezes gera dúvidas práticas).
3. Como já foi explicado pelo Marco Caldeira neste post, o artigo 47º/3 estabelece o dever de fixar o preço base de acordo com critérios objectivos. Este é mais um aspecto no qual se manifesta a intenção do anteprojecto de promover a elaboração cuidada e rigorosa das peças do procedimento por parte da entidade adjudicante. Como também refere o Marco Caldeira, é importante que o preço base não seja indutor de práticas discutíveis à luz dos imperativos de cumprimento das regras laborais e sociais e da sã concorrência: e como tal, ele não deve ser demasiado baixo. Acrescentaria eu: por razões de protecção do erário público, e também da própria concorrência, também é importante que o preço base não seja fixado em valores demasiado elevados, sendo esta uma opção com a qual as entidades adjudicantes devem preocupar-se.
A norma não se limita a impor a fixação de critérios objectivos, indica também que devem ser utilizados, “como referência preferencial, os custos médios unitários de prestações do mesmo tipo adjudicadas em anteriores procedimentos”. De facto, o histórico é o critério natural de fixação do preço base, o que não significa critério único (a expressão “referência preferencial” não deixa dúvidas sobre a possibilidade de utilizar outros critérios). A questão que o Marco levanta, sobre a compressão dos preços nos últimos anos, é relevante, mas conjuntural, não afastando aquele princípio; acho que as entidades adjudicantes saberão fazer essa avaliação.
Já concordo com a sugestão também feita pelo Marco, de incluir, a título ilustrativo, outros critérios que poderão servir de base à decisão: o custo corrente dos bens à data do procedimento, mas também a experiência recolhida aquando da execução do contrato anterior (o que não é a mesma coisa, note-se, que os preços do contrato anterior). Quanto à utilização, com o mesmo propósito, da informação recolhida na consulta preliminar (artigo 35º-B), não me parece mal prevê-la aqui – aliás, a recolha dos preços correntes poderá já ser um resultado dessa consulta. No entanto, penso que qualquer redacção que se adopte deverá salvaguardar o carácter estritamente facultativo da consulta preliminar.
4. O dever de fixação do preço base, conjugado com o disposto no nº 4 (que obriga ao cumprimento das regras que limitam o valor do contrato em razão do procedimento, bem como dos limites quantitativos de autorização de despesas), substitui os nºs 1 a 4 do artigo 47º atual, sem qualquer perda de conteúdo regulatório e com uma redacção mais enxuta. Os nºs 5 e 6 do artigo 47º do CCP actual não ficaram na versão do anteprojecto.
5. O artigo 47º/5 delimita as excepções ao dever de fixação do preço base: “[e]m casos excecionais, devidamente fundamentados, a entidade adjudicante pode não fixar preço base, desde que o procedimento permita a celebração de contratos de qualquer valor e o órgão competente para a decisão de contratar não esteja sujeito a limites máximos de autorização de despesa ou ao regime de autorização de despesas.” Parece justificar-se, de facto, a existência de excepções, designadamente no caso de contratos em que seja muito difícil antecipar, à partida, um valor plausível que possa servir como preço base. Além disso, não é de excluir, penso eu, que a entidade adjudicante invoque como fundamento para a não fixação de preço base razões de protecção da concorrência: com efeito, a doutrina tem sublinhado (e as entidades adjudicantes muitas vezes constatam) o carácter potencialmente anti-concorrencial da divulgação antecipada de preço base.
6. Entre as observações que dedicam ao artigo 47º, João Amaral e Almeida/Pedro Fernández Sánchez, Comentários, p. 68, há uma que relaciona o artigo 47º com a nova causa de não adjudicação contida no artigo 79º, nº 1, alínea h) (por lapso, os Autores referem-se a uma inexistente alínea i), mas pelo contexto, é clara a alínea a que se referem).
A observação que fazem é de natureza crítica. Segundo dizem, de duas uma: ou a entidade adjudicante quer defender-se de preços excessivos, e fixa preço base, ou, se não o fixa, “informa implicitamente o mercado de que aceitará qualquer preço que lhe seja proposto”.
É uma posição coerente com as opções de fundo dos Autores nesta matéria, que sacrificam sempre a posição da entidade adjudicante em favor dos concorrentes, mesmo quando isso é desajustado. De facto, na equação dos interesses em presença, quem poderia considerar justa uma solução em que a entidade adjudicante, por boas razões (v. supra), não fixou preço base, e, perante preços claramente excessivos, não dispõe de uma faculdade de não adjudicação que lhe permita defender a sua posição? Ficaria, portanto, obrigada a “aceitar qualquer preço que lhe seja proposto”, por mais absurdo que seja. Isto não me parece razoável. Quais os interesses relevantes que, numa tal situação, obrigam a “empurrar” a entidade adjudicante para um contrato no qual seria espoliada?
7. Por fim, breve nota para a solução do artigo 47º/2. Aí se esboça uma adaptação do regime do preço base aos contratos que não implicam o pagamento de um preço pela entidade adjudicante. Em contratos de natureza concessória (nos quais em muitos casos não existe o pagamento de um preço pelo contraente público, ou é um preço residual face às receitas do concessionário) também é útil prever um preço base, que é um mecanismo importante para orientar as propostas, para as medir e nivelar, e tem pleno cabimento, também, em procedimentos de formação de contratos que não envolvem o pagamento de um preço pela entidade adjudicante, ou que não envolvem apenas esse pagamento.
Também aqui João Amaral e Almeida/Pedro Fernández Sánchez, Comentários, p. 71, têm uma observação crítica, e mais uma vez, a meu ver, sem qualquer razão. Afirmam os Autores que a norma “não tem cabimento no Direito Português” (sic) e “constitui um corpo estranho no CCP”. E explicam: “em contraste com a função que o legislador confia ao conceito de “valor do contrato”, previsto no artigo 17.º para o efeito de proteção da concorrência de mercado contra a adoção de procedimentos menos competitivos – a função específica do preço base consiste, tão simplesmente, em proteger a própria entidade adjudicante e salvaguardar as suas disponibilidades orçamentais que limitam o preço que está disposta a pagar. Ora, se – como se escreve no n.º 2 – “o contrato a celebrar não impli[car] o pagamento de um preço pela entidade adjudicante”, então não há razão para impor artificialmente um preço base, porque as disponibilidades orçamentais da entidade adjudicante não precisam de ser salvaguardadas perante um preço que nunca será pago no contrato.”
Permito-me discordar. Claro que o preço base pode servir outros propósitos que não os de protecção das disponibilidades orçamentais da entidade adjudicante: pode proteger a posição de terceiros, como os utentes de uma concessão. Proteger os recursos públicos não passa apenas por garantir que o sacrifício patrimonial directamente desembolsado pelas entidades públicas é justo, equitativo e comportável: pode passar por garantir isso mesmo, mas para os sujeitos que efectivamente desembolsam. A protecção do público em geral – que, em muitos contratos, é chamado a financiar a infra-estrutura ou serviço público através de pagamentos directos ao concessionário – está plenamente dentro das preocupações legítimas das entidades adjudicantes. Com o devido respeito, afirmações como as acima transcritas revelam uma visão insuficiente e incompleta do que é o interesse público prosseguido por via de contrato.
MAR
Miguel,
Apesar de não o ter referido no meu post (que tinha outro foco), concordo em absoluto com o que referes relativamente à função do preço base como defesa das entidades adjudicantes e à conveniência de esse preço não ser excessivamente elevado.
Num contexto, como ainda é o do actual CCP (mas que deixará de ser se a solução do Anteprojecto for avante), de fixação de limiares supletivos do “preço anormalmente baixo”, tendo como referência o “tecto máximo” do preço base, conduzia a que, quando este (preço base) era muito elevado, os concorrentes podiam confortavelmente apresentar propostas que seriam qualificadas como de “preço anormalmente baixo” mas que, na verdade, eram propostas perfeitamente exequíveis e a preço de mercado – o que originava a necessidade de apresentação, pelos concorrentes, de uma justificação tão singela quanto esta, a de que “o preço da proposta não é anormalmente baixo, o preço base é que é anormalmente alto”.
Por outro lado, em mercados (ou sectores de mercado) menos concorrenciais, um preço base muito alto poderia funcionar como um “convite implícito” ao conluio entre concorrentes, permitindo à proposta vencedora uma margem de lucro significativa e sem correspondência com a execução do contrato em condições normais de mercado.
Quanto à nova alínea h) do artigo 79.º/1, não estou certo de que seja uma total inovação, já que encontra, pelo menos, um “parente distante” (ou não tão distante assim…) na actual alínea e), segundo a qual, “No procedimento de ajuste directo em que só tenha sido convidada uma entidade e não tenha sido fixado preço base no caderno de encargos, o preço contratual seria manifestamente desproporcionado”. É certo que se trata de consagrar isto como uma cláusula geral (e não apenas uma cláusula específica) de não adjudicação, mas ainda encontra algum paralelo com o que já existe.
Percebo, no entanto, a crítica à insegurança jurídica que pode decorrer de, apesar da ausência de preço base, nunca se saber se a entidade adjudicante não irá proferir uma decisão de não adjudicação com base no preço excessivo das propostas. O que, tratando-se de matéria discricionária, poderia até propiciar situações de desvio de poder, muito difíceis de provar, em que a entidade adjudicante afinal não quer celebrar o contrato mas, não encontrando motivos para excluir todas as propostas, invoque que o seu preço seria “inaceitável”.
O uso do termo “inaceitável” é que é, segundo julgo, uma inovação, já que, nos regimes anteriores ao CCP, a “inaceitabilidade” dizia respeito às propostas, e não (apenas) ao respectivo preço. E parece-me tratar-se de um conceito demasiado vago para fornecer parâmetros seguros a este respeito: talvez pudesse pensar-se na utilização, também aqui, do critério da “manifesta desproporcionalidade”, que, apesar de tudo, se afigura mais rigoroso. A acolher-se esta sugestão, até poderia pensar-se na unificação das alíneas e) e h) do artigo 79.º/1 do CCP, formulando uma única cláusula de não adjudicação para os procedimentos em que não haja preço base, permitindo que nenhuma proposta seja adjudicada quanto se demonstre que os seus preços seriam manifestamente desproporcionados.
MRC
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Por acaso estou convencido que para o caso do 47º/5 o conceito é inaceitabilidade, e inaceitabilidade do preço (e não da proposta, o que seria, isso sim, retornar a um conceito genérico de inaceitabilidade, de contornos muito indefinidos, que vigorava antes de 2008), e não desproporcionalidade manifesta. Este último conceito aponta mais para um juízo de comparação entre o objecto da proposta e o seu preço (i.e, a referência do juízo é o concorrente). O juízo de inaceitabilidade tem como referência a entidade adjudicante: até pode o preço estar adequado à proposta, mas ele é inaceitável do ponto de vista da entidade adjudicante: por exemplo, é surpreendentemente elevado, embora seja plausível face ao que foi apresentado pelo concorrente.
Quanto às preocupações de insegurança jurídica: é claro que se partimos desses receios de desvios de poder e quejandos, nunca se daria margem de livre decisão a ninguém. Mas a margem de livre decisão, particularmente no que toca à decisão fundamental sobre se se avança ou não para o contrato, é imprescindível, num sistema de contratação pública bem ordenado. Para os casos patológicos, de mau uso da margem de livre decisão, cabe, como sempre, à doutrina e à jurisprudência aprimorar os instrumentos de controlo.
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