Enquanto se aguarda pela ansiada publicação da revisão do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) – que se espera para breve, até porque responsáveis governamentais já afirmaram, em entrevista, que o diploma entraria em vigor em Julho de 2017 –, e porque essa publicação previsivelmente ocupará as atenções e os fóruns de debate daí em diante, parece-me oportuno, enquanto isso não acontece, fazer uma pequena reflexão lateral.

De facto, sem prejuízo dos problemas sentidos pelas entidades adjudicantes e pelos operadores económicos no dia-a-dia e que são imputáveis ao legislador – alguns dos quais serão resolvidos pela revisão do CCP e outros não, não sendo ainda de excluir que novos problemas venham a ser criados pelo diploma que aí vem –, importa ter presente que não se pode esperar que a lei resolva tudo e que há patologias que não dependem do legislador. Refiro-me a casos em que os problemas surgem, não por causa da lei, mas apesar dela ou independentemente dela, isto é, porque as entidades adjudicantes, muitas vezes, cometem erros evitáveis na elaboração das peças do procedimento e no desenho de algumas soluções a montante, que vêm depois a redundar em litígios desnecessários a jusante.

Já no ano passado, numa aula de pós-graduação, tive o ensejo de apresentar alguns exemplos com que já me deparei, de “más práticas” na contratação pública. Esse elenco, que me parece útil partilhar agora com um público mais vasto, incluía os seguintes casos:

1) Prazo para apresentação de propostas

Matéria onde se cometem muitos erros, sobretudo pela fixação de prazos excessivamente curtos (aqui o legislador também não ajuda, nomeadamente ao permitir concursos públicos urgentes para empreitadas que podem envolver alguma complexidade. É a solução que tem vindo a ser consagrada avulsamente em sucessivos Decretos-Leis de execução orçamental e que o Anteprojecto de revisão do CCP passa a prever como regra geral. Aliás, as próprias Directivas prevêem uma redução generalizada dos prazos para apresentação das propostas).

Independentemente da legalidade na fixação desses prazos, importa ter presente que nem todos os prazos admitidos por lei são bons, isto é, o critério não deve ser principalmente o respeito pelo limite mínimo legalmente admitido, mas sim o da adequação à preparação de propostas cuidadas, como decorre do artigo 63.º/2 do CCP. Propostas feitas à pressa dão mau resultado para os concorrentes e são más para as entidades adjudicantes.

Por outro lado, estas não podem esquecer-se de que, na medida em que algumas decisões suas têm de ser tomadas em fracções desse prazo, quanto mais curto é o prazo fixado para os concorrentes, mais reduzida é também a fracção de que elas dispõem… não é só fixar um prazo de 12 dias para a apresentação de propostas, é lembrar que isso significa que só têm 4 dias para responder aos pedidos de esclarecimentos formulados pelos interessados e 2 para a resposta às listas de erros e omissões (bem sei que a alteração de 2012 ao artigo 61.º/4 do CCP veio permitir a suspensão desse prazo, mas ainda assim).

Paralelamente, se os prazos intercalares estabelecidos para os concorrentes e entidades adjudicantes durante o decurso do prazo de apresentação de propostas constituem fracções desse prazo, porque não estabelecer o prazo final de modo a que esses prazos intercalares coincidam com unidades inteiras? Dito ao contrário: porquê estabelecer um prazo de 14 dias, obrigando os concorrentes a interrogarem-se se o 1/3 do prazo – isto é, matematicamente, 4,6 dias – cai no 4.º dia (à cautela) ou no 5.º (por aplicação das regras gerais do arredondamento), ou a perguntar-se se devem converter os 14 dias em horas e dividir esse número por 3? Bastaria que a entidade adjudicante tivesse fixado um prazo em múltiplos de 3 para que estas dúvidas (esdrúxulas, mas só aparentemente simples de resolver) não se colocassem.

2) Prazo para a manutenção de propostas

O principal erro que detecto quanto a este ponto é o da previsão de prazos excessivamente curtos para cobrir toda a tramitação do procedimento, sobretudo quando há mais do que uma fase de audiência prévia.

Por outro lado, importa acautelar a hipótese de caducidade da primeira adjudicação, sendo que a adjudicação subsidiária ao concorrente cuja proposta tenha ficado ordenada em lugar subsequente depende de ainda estarmos dentro do prazo de manutenção das propostas, sob pena de este concorrente vir declarar que já não está vinculado à proposta apresentada, deixando a entidade adjudicante desamparada.

Além disso, convém ter presente a eventual necessidade de cumprimento de formalidades pós-adjudicatórias cujos prazos não estão na disponibilidade da entidade adjudicante, como aquela que vem prevista no artigo 37.º/2 da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio (que prevê a notificação, à Autoridade da Concorrência, da adjudicação de um contrato que dê origem a uma “operação de concentração”, tal como definida naquela lei).

3) Documentos da proposta

Um exemplo clássico, meu preferido: a entidade adjudicante exigir, no programa do procedimento, a apresentação dos “esclarecimentos justificativos da apresentação de um preço anormalmente baixo, quando esse preço resulte, directa ou indirectamente, das peças do procedimento” (destaque meu, claro).

A moral da história é que nem sempre copiar a lei [neste caso, o artigo 57.º/1, alínea d) do CCP] dá bom resultado: só porque está na lei, não significa que não deva haver um mínimo de espírito crítico. É a entidade adjudicante que, nas peças, deve ou não dizer se há um “preço anormalmente baixo”, em vez de pôr os concorrentes a adivinhar se ele resulta ou não, “directa ou indirectamente”, das peças que estão a ler… o que é grave, sobretudo, quando depois essas mesmas peças nem sequer fixam qualquer “preço anormalmente baixo”, deixando os concorrentes sem perceber qual a utilidade da exigência dos “esclarecimentos” em causa.

4) Critério de adjudicação

A fixação do critério do preço mais baixo, sem prever critérios de desempate no caso (frequentíssimo, aliás) de dois ou mais preços igualados ao cêntimo (ou em mais casas decimais…).

Não quero entrar aqui em discussões sobre a aplicação do sorteio ou sobre o entendimento do Tribunal de Contas relativamente à previsão do momento da apresentação das propostas como critério de desempate – aspectos que já foram desenvolvidos na doutrina, em especial por João Amaral e Almeida (na Revista de Contratos Públicos) e por Licínio Lopes Martins (nos Cadernos de Justiça Administrativa). O que vale a pena, sim, é relembrar as entidades adjudicantes que, em contratos de prestações padronizadas e em mercados pequenos, quando se adjudica só com base no preço, a ocorrência de empates é normal e é expectável: uma capacidade de antecipação do problema, através da sua regulação ex ante, permite evitar dores de cabeça num momento mais adiantado do procedimento.

Em suma, termino como comecei: todos aguardamos a revisão do CCP, que chegará cerca de um ano depois do termo do prazo para a transposição das Directivas de 2014 (o qual terminava em Abril de 2016). Mas não podemos esperar tudo do legislador e esquecer-nos do que só depende de nós.

Qualquer um dos aspectos que acima referi (e tantos outros poderiam ser elencados) se deve apenas a mau planeamento, e não a má legislação. Não é preciso, por isso, esperar que o legislador venha regular tudo, mas sim, tão-somente, não criar problemas onde eles não existem ou não têm de existir. E isso vem com a experiência, com a troca de impressões (este blog pode ser um local bom para o efeito) e, factor por vezes raro, com uma dose de bom senso.

Como dizia alguém, fazer as coisas de forma simples é do mais complicado que há. Mas penso que isso não deve fazer-nos desistir de tentar.