1. Ao estudar o tema da divisão em lotes, é comum encontrar-se a afirmação segundo a qual os sistemas de contratação pública em geral, e a directiva 2014/24 em particular, são intrinsecamente contraditórios, ao assumirem como principal instrumento de promoção do acesso das PME aos contratos públicos a divisão em lotes, e, ao mesmo tempo, ao avançarem decididamente no sentido do reforço da tendência actual para a centralização das aquisições, o que se manifesta na ênfase dada à regulação das centrais de compras e dos instrumentos que servem a centralização (em particular os acordos quadro e os sistemas de aquisição dinâmicos).

Alguns chamam ainda a atenção para que o próprio artigo 46º da Directiva, depois de uma regra favorável à divisão em lotes (nº 1), admite que se estabeleça mecanismos tendentes a permitir que, num procedimento em que há vários lotes, se admita a adjudicação de vários ao mesmo adjudicatário (nº 3), algo que, novamente, seria contraditório.

E acrescenta-se que estas contradições intrínsecas anulariam quaisquer vantagens que a divisão em lotes poderia trazer, resultando num saldo final das directivas de 2014 que seria muito pouco amigo das PME.

2. Colocar a questão nestes termos, em meu entender, faz tanto sentido (ou seja, pouco) como dizer, para dar outro exemplo de uma afirmação comum, que é contraditório pedir que os sistemas de contratação pública se orientem no sentido da transparência, objectividade e estabilidade dos procedimentos, e que, ao mesmo tempo, se reserve às entidades adjudicantes margem de livre decisão suficiente para avaliar as propostas, ou para decidir não adjudicar. É que ambos esses desideratos são válidos e são conciliáveis, e por isso compreende-se que o legislador pretenda acolher os dois.

De facto, uma ideia central de todo o direito, e por isso, também do direito dos contratos públicos, é o equilíbrio. Na arena social enfrentam-se diversos interesses e valores (não por acaso se lhe chama uma arena). Em alguns casos será mais justo escolher uns sobre os outros e nesses casos, um interesse pode ser totalmente preterido em benefício de outro. Noutros casos, designadamente quando todos os interesses e valores devem merecer alguma medida de concretização, ao direito cabe demarcar o campo das escolhas e devolver essas escolhas a quem está perto da situação e pode perceber melhor as características da situação a resolver (neste caso, quem está próximo do contrato a celebrar e vai ser servido por ele).

3. É por isso que, sob um pano de fundo de genérica concordância, tenho uma observação (sob a forma de pergunta) ao último post do Marco Caldeira, onde ele dizia esperar que o legislador não invente problemas. É claro que se espera que o legislador não crie problemas inúteis. No entanto, ao legislador cabe, em alguns casos, mudar as coisas. Ora, um bom número de mudanças são encaradas, quando surgem, como problemas, desde logo porque põem em causa situações consolidadas, que até podem ser cómodas, mas nem sempre serão correctas.

Exemplificando com a divisão em lotes: actualmente, a lei não prevê como regra geral que se divida em lotes, ou que as entidades adjudicantes expliquem por que razão não dividiram o objecto de um procedimento em lotes. E não é difícil admitir que este regime trazido pela directiva vai gerar “problemas”, no sentido de que vai obrigar as entidades adjudicantes a incorporar mais esta preocupação no conjunto de assuntos a considerar quando lançam um procedimento, e o regime, claro, pode gerar dúvidas de aplicação, como habitualmente geram os regimes legais relevantes.

No entanto, apesar de tudo isso, o legislador europeu achou que era importante criar um dever de ponderar a divisão em lotes: “inventou”, portanto, um “problema”. Contudo, fê-lo porque achou que a figura pode ajudar a resolver outro problema maior, em concreto, o problema do reduzido acesso de uma fatia significativa das empresas à contratação pública.

Não será sempre assim que se evolui?

4. Voltando agora ao tema inicial. Numa simplificação um pouco grosseira, a divisão em lotes procura fazer os contratos mais pequenos, e um dos objectivos da centralização parece ser fazê-los maiores. Contradizem-se e anulam-se? Com uma má prática e aplicação, pode ser que sim; com uma boa prática e aplicação, estou seguro de que não. O que será necessário é que as centrais de compras assumam os dois desideratos, mas os assumam a sério, procurando a sua concordância prática.

Se o fizerem, nada mais fazem do que aplicar a lei, que já dá todas as indicações: com efeito, na alínea e) do artigo 4º do Decreto-Lei nº 37/2007 (diploma que regula o Sistema Nacional de Compras Públicas) coloca-se, como objectivo do SNCP, a redução de custos para a Administração Pública; mas na alínea g), coloca-se igualmente como objectivo a concorrência e a diversidade de fornecedores. É na prossecução equilibrada destes objectivos que está a virtude da centralização das compras.

Numa primeira leitura, é fácil ficarmo-nos pela aparente contradição e inconciliabilidade de exigências de sentido diferente. Para outro post, ficarão algumas indicações sobre como operacionalizar essas exigências em concreto.

MAR

(Full disclosure: enquanto advogado, tive intervenção em acções, já transitadas em julgado, nas quais se pôs em causa os critérios de divisão em lotes utilizados em acordos quadro em sede de centralização de compras. Atendendo ao objecto deste post, o facto é suficientemente relevante para dever ser aqui referido, mas não determinou o que penso sobre este assunto)