1. Em post anterior apresentou-se a visão segundo a qual não são inconciliáveis os movimentos, paralelos, no sentido da promoção da divisão em lotes e no sentido da centralização das compras – movimentos muito claramente presentes na reforma das directivas de 2014 e que, por isso mesmo, passam para o projecto de revisão do CCP, que as transpõe. Ficou para outro post – este – a tentativa de dar indicações concretas sobre como operacionalizar essas exigências.

Como é evidente, as centrais de compras também estão sujeitas ao disposto em matéria de divisão em lotes (no artigo 46º da Directiva 24 e no projectado artigo 46º-A do anteprojecto de revisão do CCP). Tendo em conta a dimensão dos acordos quadro por si postos à concorrência, serão mesmo uma categoria de entidades que deverá ter em especial conta esta matéria.

2. Isto impõe, como disse no post anterior, que as entidades adjudicantes levem a sério o imperativo de conciliar os diversos interesses, nos procedimentos que lançam. Uma prática meramente protocolar e pouco cuidada, que até proceda à divisão em lotes, mas sem pensar a fundo nos critérios com que o faz e nos efeitos do que faz, é uma prática que não serve. Como demonstrou Albert Sánchez-Graells, tem de se incorporar no desenho dos procedimentos uma perspectiva de efectiva orientação para a concorrência.

Para dar o exemplo talvez mais simples, óbvio e premente, olhando para aquela que tem sido uma (má) prática do nosso sistema de centralização de compras: criar lotes, em procedimentos de acordos quadro, com valores estimados anuais de 20, 30 ou 60 milhões de euros, utilizando requisitos de qualificação (designadamente de capacidade financeira) que partem da ideia de que qualquer fornecedor pode ter acesso à totalidade dos contratos desse lote, é uma pura ficção de divisão em lotes e uma demonstração de que as centrais de compras are missing the point.

3. A falha do raciocínio que leva a critérios de divisão dessa natureza está em não reconhecer que seria possível, com ligeiríssimos ajustamentos e sem prescindir do essencial (designadamente, sem prescindir das economias de escala), permitir um efectivo acesso das PME aos acordos quadro.

Uma forma simples seria, sem prescindir da divisão em “grandes lotes”, de acordo com um critério geográfico, abrir dois ou mais escalões, conforme adequado, dentro dos lotes, de acordo com os valores de contrato envolvidos: se um escalão permitisse às empresas ficar qualificadas para contratos até 500.000€ ou 1 milhão de euros, por exemplo, criar-se-ia, nesse escalão, grande diversidade de fornecedores, ainda que o valor total estimado do lote seja de 10 ou 20M€. Já para os contratos desse “grande lote” que exigem maior capacidade financeira (contratos entre 1M€ e 5M€, por exemplo, e por aí fora), haveria, pelo funcionamento natural do mercado, um número inferior de fornecedores, criado por requisitos de capacidade financeira mais exigentes, já que ninguém pretende que grandes contratos sejam ganhos por agentes económicos incapazes de os executar.

Outra hipótese: diferenciar lotes de acordo com o tipo e dimensão das entidades adjudicantes que os utilizarão, ou mesmo criar lotes que correspondam apenas a uma entidade adjudicante. Os agentes económicos poderiam por isso disputar lotes de entidades adjudicantes próximas, geograficamente, do seu local privilegiado de actuação, com evidente aumento da diversidade de fornecedores e sem impedir que agentes económicos maiores permanecessem também qualificados para esses lotes. Ganhar-se-ia assim na uniformidade, profissionalismo e capacidade de negociação na outorga do acordo quadro, sem abandonar o potencial para diversidade de fornecedores na outorga dos contratos ao abrigo do acordo quadro.

4. São dois exemplos, entre muitos, de instrumentos à mão de semear das centrais de compras, oferecidos pela ciência económica, pelos princípios jurídicos da contratação pública e pelos exemplos de boas práticas, designadamente no estrangeiro. No entanto, até agora, tem sido escassa ou inexistente a sua utilização entre nós.

Uma explicação possível para esse facto é a de que tem prevalecido a visão de curto prazo, que torna em prioridade exclusiva a baixa significativa de preços. Isto obviamente esquece uma das lições básicas da teoria económica: uma vez eliminados do mercado os pequenos e médios operadores e obtida a concentração de um mercado em um, dois ou três grandes agentes económicos, a subida generalizada de preços e a descida de qualidade são resultados fatais – que acrescem a todos os prejuízos sistémicos, de ordem económica e social, que necessariamente ocorrem no percurso até essa concentração do mercado.

5. O que é pedido com a divisão em lotes é claro; o que pode ser oferecido pela centralização das compras, também. Os objectivos que justificam qualquer um desses movimentos são todos válidos, e naturalmente obrigam as entidades adjudicantes a encontrar uma prática virtuosa, que lhes dê concretização adequada. Reconhecer isto não é reconhecer qualquer contradição intrínseca do ordenamento jurídico. É afirmar um truísmo.

MAR

(Full disclosure: enquanto advogado, tive intervenção em acções, já transitadas em julgado, nas quais se pôs em causa os critérios de divisão em lotes utilizados em acordos quadro em sede de centralização de compras. Atendendo ao objecto deste post, o facto é suficientemente relevante para dever ser aqui referido, mas não determinou o que penso sobre este assunto)