1. Notícias de ontem: “Mercado selvagem desvia encomenda portuguesa de material contra a covid-19”; “Covid-19. Espanha comprou à China 340 mil testes rápidos que não funcionam”; e “Covid-19. Portugal não comprou testes que Espanha devolveu à China por falta de fiabilidade”.
2. Esta é uma dimensão do problema que não pode ser ignorada pela comunidade jurídica atenta aos temas de contratação pública. Os actores públicos (como os Estados) e privados com responsabilidades na gestão do surto estão a assumir a posição de competidores uns dos outros pela aquisição dos mesmos bens. As ferramentas de mercado (e tudo isto se passa já no mercado global dos produtos e serviços médicos) estão a ser testadas e porventura irão expor os seus limites, suscitando uma reflexão global da qual provavelmente resultará que sem uma mistura virtuosa de mecanismos de mercado pela via contratual, mecanismos regulatórios unilaterais, política industrial e mesmo intervenção pública, não se conseguem resultados adequados.
A nível nacional, mas também europeu, e potencialmente de maior escopo (global?), há que pensar nas possíveis vantagens (e também nas limitações institucionais actuais) da centralização e agregação de compras, já que um nível desadequado de compra pode reduzir demasiado a capacidade negocial das entidades adjudicantes, potenciar o desperdício (uma coisa estar em stock num sítio, e a faltar noutro) e ter um impacto importante nos preços. Um barómetro importante (para o bem ou para o mal) será olhar para os eventuais frutos das iniciativas, actualmente em curso e a conduzir, de centralização, via UE, da aquisição de material de protecção individual e outro equipamento.
3. Tudo isto confere ainda mais relevância ao colóquio online, que teve lugar em 24 de Março, organizado pelo Prof. Chris Yukins, sobre a contratação pública neste tempo de excepção, focado na dimensão internacional, mas com muitos dados a ter em conta de experiências nacionais (em especial, a italiana), e onde estes temas foram abordados. Está disponível gratuitamente (mediante registo) em https://publicprocurementinternational.com/ e aqui: . Aconselha-se vivamente a consulta, para aumentarmos a nossa compreensão do que se está a passar e compreender quais as vias que se deve (ou não) seguir. O caso dos testes rápidos adquiridos por Espanha, por exemplo, dialoga de forma clara com o tema, ali discutido, da maior ou menor exigência, em contexto emergencial, do cumprimento de especificações técnicas e requisitos de qualificação e habilitação dos agentes económicos. No caso português, é oportuno recordar que exigências desse tipo, tal como as respeitantes aos impedimentos do artigo 55.º do CCP (neste caso, como já foi recordado por Pedro Gonçalves e Licínio Lopes Martins), não foram afastadas pelas regras excepcionais de contratação pública – e bem, porque elas garantem valores essenciais do sistema. Não se pode excluir que, em situações absolutamente limite (e talvez essencialmente teóricas), mesmo algumas dessas normas pudessem ter de ceder (para o que, além da figura geral do estado de necessidade, a norma do artigo 57.º, n.º 3, da Directiva 2014/24 ofereceria um apoio insuspeito, como alguém notava em comentário ao post de 15 de Março); mas para o bem dos interesses fundamentais que essas normas protegem, será bom que mesmo em contexto de contratação de emergência, elas continuem a ser aplicadas com rigor.
MAR
Uma Administração pública a trabalhar sobre brasas pode levar a decisões erradas na aplicação da lei. Mas as boas práticas para evitar favoritismos e comportamentos oportunistas é um problema de integridade na contratação pública – anterior à crise sanitária.
Dentro da lógica dos impedimentos – pensando naqueles que envolvam ligações pessoais ou próximas entre representantes de entidades adjudicantes e operadores económicos – (1) busco os argumentos que “impossibilitam” ajustes diretos ao abrigo do regime excecional do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, reiterados e direcionados ao mesmo operador económico.
Associado àquele tipo de impedimentos e procedimentos adjudicatórios estão, nomeadamente, os princípios da imparcialidade, transparência, concorrência, proporcionalidade, da igualdade de tratamento e da não-discriminação, expressamente consagrados no art.º 1.º -A do CCP e n.º 2 do art.º 201.º do CPA, e que vinculam as entidades adjudicantes. (2)
A meu ver, a inaplicabilidade do n.º 2 do art.º 113.º do CCP e a urgência não basta para justificar sucessivas aquisições ao mesmo operador económico, é necessário provar ainda o pressuposto da necessidade de tal opção. Requisito da necessidade que é igualmente exigível para legitimar a adoção do ajuste direto, conforme previsto no art.º 2.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, conjugado com a alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do CCP. (3)
Convoco, portanto, também aqui um raciocínio de proporcionalidade, com virtualidade para barrar excessivos convites à mesma entidade.
Vejamos o exemplo, no plano teórico, de todas as entidades adjudicantes escolherem por ajuste direto o mesmo operador económico, escudando-se no regime excecional de que não as obriga a optar por outro. Este bloqueio à atividade económica dos restantes operadores, provocado pelo próprio Estado, seria inadmissível à luz do art.º 1.º A do CCP. Se a leitura e aplicação das normas visadas fosse aquela então levanta-se um problema de constitucionalidade ou não?
O compreensível regime de agilização das compras que agora vigora possibilita tomadas de decisão rápidas, não podia ser de outra forma diante de tão excecionais circunstâncias. Mas como disse, num comentário anterior, não vale tudo. (4)
____________________
(1) Impedimentos relativos ao exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, previstos na Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, e impedimentos e suspeições nos termos do art.º 69.º e art.º 73.º do CPA. Sobre estes impedimentos – Cfr. Pedro Gonçalves e Licínio Lopes Martins, in “Breve comentário ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, ratificado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março”, texto publicado no Observatório Almedina – O Mundo por Especialistas -, acessível no endereço: https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/03/23/regime-excecional-de-contratacao-publica-no-ambito-da-epidemia-da-doenca-do-covid-19/
(2) Em matéria de contratação pública e sobre os impedimentos abrangidos pelo Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Dirigentes, a jurisprudência considera tais impedimentos sob a égide dos princípios da imparcialidade e da transparência. Cfr. Acórdão do TCAS, Processo 396/18.8BECTB, de 10-10-2019 – Acórdão do STA, Processo 088/18.8BEPNF, de 09-05-2019 – Acórdão do STA, de 12-12-2019, no Processo n.º 88/18.8 BEPNF.
(3) A propósito do n.º 2 do art.º 113.º do CCP, o Prof. Miguel Assis Raimundo, referindo-se à não aplicação das limitações constantes naquela norma aos procedimentos abrangidos pelo diploma do regime excecional, disse: “ (…) No caso do n.º 2 do artigo 113.º do CCP, não se trata propriamente de uma alteração, mas de uma recordatória, pois o impedimento aí previsto, mesmo textualmente, só se aplica aos ajustes directos em razão do valor (…) “. – Cfr. Comentário na sequência do texto da autoria do Prof. Miguel Assis Raimundo: “Primeira leitura das medidas excepcionais de contratação pública em resposta ao surto de COVID-19 (incluídas no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março)”, publicado no dia 15 de março 2020, no Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP, no endereço: https://contratospublicos.net/2020/03/15/primeira-leitura-das-medidas-excepcionais-de-contratacao-publica-em-resposta-ao-surto-de-covid-19-incluidas-no-decreto-lei-n-o-10-a-2020-de-13-de-marco/*
* Sem prejuízo de concordar com a opinião o Sr. Professor (que teve reforço do legislador para que não subsistam dúvidas), julgo que o problema está precisamente aqui. Ou seja, as entidades adjudicantes intuírem que lhes foi dada total liberdade para escolher sucessivamente, durante toda a crise sanitária, o mesmo operador económico.
(4) Cfr. Comentário na sequência do texto da autoria do Prof. Miguel Assis Raimundo: “Primeira leitura das medidas excepcionais de contratação pública em resposta ao surto de COVID-19 (incluídas no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março)”, publicado no dia 15 de março 2020, no Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP, no endereço: https://contratospublicos.net/2020/03/15/primeira-leitura-das-medidas-excepcionais-de-contratacao-publica-em-resposta-ao-surto-de-covid-19-incluidas-no-decreto-lei-n-o-10-a-2020-de-13-de-marco/*
*Aproveito para fazer uma retificação naquele comentário, quando disse sobre ajuste direto simplificado “ que se ficou por um valor inferior a 20.000 €)” queria obviamente dizer não superior a 20 000 €.
CurtirCurtir
Saudar, uma vez mais, o Professor Miguel Assis Raimundo pelos excelentes textos aqui publicados. Deixo, a seguir, umas breves linhas, que de algum modo têm ligação ao assunto que superiormente tratou.
Uma Administração pública a trabalhar sobre brasas pode levar a decisões erradas na aplicação da lei. Mas as boas práticas para evitar favoritismos e comportamentos oportunistas é um problema de integridade na contratação pública – anterior à crise sanitária.
Dentro da lógica dos impedimentos – pensando naqueles que envolvam ligações pessoais ou próximas entre representantes de entidades adjudicantes e operadores económicos – (1) busco os argumentos que “impossibilitam” ajustes diretos ao abrigo do regime excecional do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, reiterados e direcionados ao mesmo operador económico.
Associado àquele tipo de impedimentos e procedimentos adjudicatórios estão, nomeadamente, os princípios da imparcialidade, transparência, concorrência, proporcionalidade, da igualdade de tratamento e da não-discriminação, expressamente consagrados no art.º 1.º -A do CCP e n.º 2 do art.º 201.º do CPA, e que vinculam as entidades adjudicantes. (2)
A meu ver, a inaplicabilidade do n.º 2 do art.º 113.º do CCP e a urgência não basta para justificar sucessivas aquisições ao mesmo operador económico, é necessário provar ainda o pressuposto da necessidade de tal opção. Requisito da necessidade que é igualmente exigível para legitimar a adoção do ajuste direto, conforme previsto no art.º 2.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, conjugado com a alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do CCP. (3)
Convoco, portanto, também aqui um raciocínio de proporcionalidade, com virtualidade para barrar excessivos convites à mesma entidade.
Vejamos o exemplo, no plano teórico, de todas as entidades adjudicantes escolherem por ajuste direto o mesmo operador económico, escudando-se no regime excecional de que não as obriga a optar por outro. Este bloqueio à atividade económica dos restantes operadores, provocado pelo próprio Estado, seria inadmissível à luz do art.º 1.º A do CCP. Se a leitura e aplicação das normas visadas fosse aquela então levanta-se um problema de constitucionalidade ou não?
O compreensível regime de agilização das compras que agora vigora possibilita tomadas de decisão rápidas, não podia ser de outra forma diante de tão excecionais circunstâncias. Mas como disse, num comentário anterior, não vale tudo. (4)
____________________
(1) Impedimentos relativos ao exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, previstos na Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, e impedimentos e suspeições nos termos do art.º 69.º e art.º 73.º do CPA. Sobre estes impedimentos – Cfr. Pedro Gonçalves e Licínio Lopes Martins, in “Breve comentário ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, ratificado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março”, texto publicado no Observatório Almedina – O Mundo por Especialistas -, acessível no endereço: https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/03/23/regime-excecional-de-contratacao-publica-no-ambito-da-epidemia-da-doenca-do-covid-19/
(2) Em matéria de contratação pública e sobre os impedimentos abrangidos pelo Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Dirigentes, a jurisprudência considera tais impedimentos sob a égide dos princípios da imparcialidade e da transparência. Cfr. Acórdão do TCAS, Processo 396/18.8BECTB, de 10-10-2019 – Acórdão do STA, Processo 088/18.8BEPNF, de 09-05-2019 – Acórdão do STA, de 12-12-2019, no Processo n.º 88/18.8 BEPNF.
(3) A propósito do n.º 2 do art.º 113.º do CCP, o Prof. Miguel Assis Raimundo, referindo-se à não aplicação das limitações constantes naquela norma aos procedimentos abrangidos pelo diploma do regime excecional, disse: “ (…) No caso do n.º 2 do artigo 113.º do CCP, não se trata propriamente de uma alteração, mas de uma recordatória, pois o impedimento aí previsto, mesmo textualmente, só se aplica aos ajustes directos em razão do valor (…) “. – Cfr. Texto da autoria do Prof. Miguel Assis Raimundo: “Primeira leitura das medidas excepcionais de contratação pública em resposta ao surto de COVID-19 (incluídas no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março)”, publicado no dia 15 de março 2020, no Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP, no endereço:
https://contratospublicos.net/2020/03/15/primeira-leitura-das-medidas-excepcionais-de-contratacao-publica-em-resposta-ao-surto-de-covid-19-incluidas-no-decreto-lei-n-o-10-a-2020-de-13-de-marco/*
* Sem prejuízo de concordar com a opinião o Sr. Professor (que teve reforço do legislador para que não subsistam dúvidas), julgo que o problema está precisamente aqui. Ou seja, as entidades adjudicantes intuírem que lhes foi dada total liberdade para escolher sucessivamente, durante toda a crise sanitária, o mesmo operador económico.
(4) Cfr. Comentário na sequência do texto da autoria do Prof. Miguel Assis Raimundo: “Primeira leitura das medidas excepcionais de contratação pública em resposta ao surto de COVID-19 (incluídas no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março)”, publicado no dia 15 de março 2020, no Sítio do Grupo de Contratos Públicos do CIDP, no endereço: https://contratospublicos.net/2020/03/15/primeira-leitura-das-medidas-excepcionais-de-contratacao-publica-em-resposta-ao-surto-de-covid-19-incluidas-no-decreto-lei-n-o-10-a-2020-de-13-de-marco/*
*Aproveito para fazer uma retificação naquele comentário, quando disse sobre ajuste direto simplificado “ que se ficou por um valor inferior a 20.000 €)” queria obviamente dizer não superior a 20 000 €.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Meu caro Dr. José Carlos Durão, muito obrigado por mais este contributo – são sempre muito estimulantes e de grande qualidade.
Eu responderia da seguinte maneira. Impedimentos previstos na lei, sem dúvida: os do CCP, os da Lei 52/2019, os do CPA, e quaisquer outros que estejam previstos na lei; aplicação dos princípios gerais, incluindo imparcialidade, boa administração, economia e eficiência, também sem dúvida; nos procedimentos por convite, ajuste directo e consulta prévia, exigência de um discurso fundamentador, mesmo sucinto, da escolha do(s) agente(s) económico(s) convidado(s), também sem dúvida, e parece-me que já poucos dispensam essa exigência mínima de racionalidade.
Só por estas afirmações, já fica excluído o “vale tudo” ou a “total liberdade” das entidades adjudicantes para escolherem quem quiserem, o que é verdade quer no regime geral, quer em quaisquer regimes extraordinários.
A partir daqui, não me parece que tenha suporte no direito constituído qualquer lógica de proibição abstracta, com contornos bastante indefinidos, de adjudicações “sucessivas”. Claro que essa prática pode ser um indício da violação, por exemplo, das normas sobre impedimentos; mas isso será outra coisa. Uma tal proibição abstracta baseada num conceito tão aberto geraria, a meu ver, demasiada incerteza, e ainda mais em contexto de emergência. O exemplo francês, que cita, muito a-propósito, em outro comentário, revela, a meu ver, a inconveniência de normas demasiado abertas sobre o tema da contratação reiterada. E a mesma dificuldade também parece explicar a atribulada história do art. 118/3 da Ley 9/2017 espanhola, que, por sinal, foi alterado, já em Fevereiro deste ano.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Boa noite. Descobri esta página ao acaso, pois andava a tentar encontrar informação relativa ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020. Quer o Prof. Miguel Assis Raimundo, quer o Prof. José Carlos Marques Durão, foram meus Professores do curso de Direito da Contratação Pública do Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa, o qual terminou em Janeiro deste ano. Foi um grande prazer ouvir as suas lições sobre os contratos públicos, tal como é um enorme prazer ler as vossas considerações sobre esta temática. Trabalho desde 2008 até ao presente na área da contratação pública e irei seguir esta página com muita atenção, pois tenho a certeza que será uma mais valia para a minha práxis.
Com os melhores cumprimentos,
Sérgio Magalhães
CurtirCurtido por 1 pessoa
Caro Dr. Sérgio Magalhães, agradecemos o seu interesse. Melhores cumprimentos. Miguel Raimundo
CurtirCurtido por 1 pessoa
Boa tarde
Apenas um reparo ao Dr. Sérgio Magalhães. O curso foi ministrado po ilustres professores universitários, designadamente, como referiu, pelo Sr. Prof. Miguel Assis Raimundo. Caro Sérgio, num painel de liga dos campões, eu só podia aspirar a um lugar nas bancadas. Qualquer das maneiras fico linsonjeado pelo seu interesse nos meus modestos comentários. Um abraço.
CurtirCurtir