O anteprojecto de revisão do CCP prevê um novo nº 4 para o artigo 24º do Código: “O ajuste direto com fundamento no disposto nas subalíneas ii) e iii) da alínea e) do n.º 1 [isto é, com fundamento em exclusividade por motivos técnicos ou de protecção de direitos exclusivos] só pode ser adotado quando não exista alternativa ou substituto razoável e quando a inexistência de concorrência não resulte de uma restrição desnecessária face aos aspetos do contrato a celebrar.”

Uma observação crítica já ouvida na discussão pública do anteprojecto diz respeito à utilização, pela norma, de conceitos abertos (alternativa ou substituto razoável, restrição desnecessária).

Porém, é de notar que na transposição o legislador está vinculado à ideia constante do artigo 32º/2/b), 2º par., da directiva 24. Como se sabe, a transposição de todos os fundamentos de dispensa de concorrência previstos nas directivas (todo o artigo 32º, neste caso), tem de ser feita com óbvio cuidado e tanto quanto possível, proximidade à própria letra: a jurisprudência europeia demonstra os perigos de uma transposição “criativa” de fundamentos de dispensa de concorrência previstos nas directivas, já que esses fundamentos são entendidos, no direito europeu (mal ou bem, não é essa a questão) como fundamentos a interpretar de modo restritivo. Veja-se, aliás, o artigo 26º/6 da directiva.

A ideia do artigo 32º/2/b), 2º par., da directiva, é simples e parece estar bem transmitida na norma do anteprojecto. A entidade adjudicante não pode desenhar artificialmente os procedimentos de modo a criar, sem fundamento, uma situação de exclusividade. O critério de fungibilidade dos bens (lato sensu) há-de ser o critério rector nessa avaliação: em princípio, se existirem dois ou mais bens no mercado que satisfaçam a mesma função essencial, não há exclusividade. Porém, a fungibilidade fáctica ou material não é um critério absoluto, porque pode haver bens de função semelhante, e apenas um deles ser compatível com a concreta necessidade da entidade adjudicante. Daí a referência da norma à razoabilidade, que introduz um critério de exequibilidade prática da solução (e de defesa da posição da entidade adjudicante na sua margem de conformação do objecto contratual e do procedimento a adoptar). De resto, a ideia do novo 24º/4 não é uma novidade. Trata-se de uma manifestação dos princípios gerais da concorrência e da proporcionalidade e encontra-se presente no direito comparado, sendo essa, claramente, a origem daquela norma da directiva (cf. Miguel Assis Raimundo, A formação dos contratos públicos, 2013, especialmente pp. 991-1000 e 1014-1016).

João Amaral e Almeida e Pedro Fernández Sánchez (Comentários, 2016, p. 83) consideram a norma do artigo 24º/4 um exemplo daquilo a que chamam “diretivez”. Parece-nos uma crítica equivocada. A redacção do art. 24º/4 do anteprojecto, aliás, corrige a norma da directiva (que fala em “parâmetros do concurso”, quando manifestamente não estamos perante concursos…).

A redacção alternativa proposta pelos referidos autores para o preceito parece-nos infeliz: “o ajuste direto com fundamento nas subalíneas ii) e iii) da alínea e) do n.º 1 só pode ser adotado quando o respetivo caderno de encargos não seja elaborado de modo a impedir uma alternativa razoável ou de modo a determinar uma restrição desnecessária da concorrência”.

Perder-se-ia, com essa redacção, a ideia essencial: a elaboração formal de um caderno de encargos sucede ao momento lógico de controlo pressuposto pela norma, que se situa na decisão de contratar e na decisão de escolha do procedimento. Por outro lado, a redacção proposta pelos autores permite uma leitura absurda: em rigor, seria possível que “o caderno de encargos seja elaborado de modo a impedir uma alternativa razoável” – desde que não se utilizasse o ajuste directo em razão de critério material… Contudo, obviamente, no ajuste directo ou fora dele, um caderno de encargos que impeça uma alternativa razoável colocará sempre problemas, quer em face dos princípios (concorrência, proporcionalidade, igualdade de tratamento), quer em face de regras concretas, como as constantes do artigo 49º do CCP (aplicáveis, repete-se, a todos os procedimentos).

MAR