Uma das principais novidades das Diretivas de 2014 relativas ao regime do preço ou custo anormalmente baixo prende-se com a sua associação ao incumprimento de obrigações de cariz laboral, ambiental ou social.
É opção clara das Diretivas incluir no regime do preço anormalmente baixo referência expressa às situações em que a anomalia da proposta advém do não cumprimento das obrigações ambientais, sociais ou laborais.
Esta opção resulta, desde logo, da nova alínea d) do n.º 2 do artigo 69.º da Diretiva 2014/24/UE, relativa à possibilidade de prestação de esclarecimentos através da demonstração do cumprimento das obrigações sociais, ambiental, laboral.
E, com superior impacto, advém igualmente do n.º 3 do artigo 69.º da Diretiva 2014/24/UE, ao se estatuir que “as autoridades adjudicantes excluem a proposta caso determinem que esta é anormalmente baixa por não cumprir com as obrigações legais de índole, social, laboral ou ambiental”.
Todavia, o Anteprojeto de revisão, apesar de no novo artigo referente aos princípios da contratação pública (artigo 1.º -A, n.º 2, em transposição do artigo 18.º, n.º 2 da Diretiva), estabelecer uma obrigação de respeito pelas normas em matéria ambiental, social, laboral, decorrentes do direito internacional, europeu, nacional ou regional, não transpõe, nem sequer parcialmente, o artigo 69.º da Diretiva no que às obrigações em matéria social, ambiental e laboral diz respeito.
Em síntese, e salvo melhor entendimento, a versão do artigo 71.º do CCP presente no Anteprojeto deverá ser revista, por via da transposição da alínea d) do n.º 2 e n.º 3 do artigo 69.º da Diretiva 2014/24/UE, na medida em que:
i) Estamos perante uma opção expressa e inequívoca do legislador comunitário, não refletida no Anteprojeto.
ii) Esta opção tem uma consequência “prática” de inegável relevância: o dever das entidades adjudicantes excluírem ao abrigo do regime do preço anormalmente baixo as propostas cujo preço é anómalo em virtude da violação de obrigações de natureza ambiental, social ou laboral.
Jorge,
Apesar de não ter opinião completamente definida sobre qual o melhor entendimento sobre a matéria à luz do Direito vigente, do ponto de vista do Direito a constituir entendo, naturalmente, que propostas com preço abaixo de custo são nocivas e que, idealmente, deveremos almejar por um sistema de contratação pública que não assente na (ou sequer pressuponha a) violação de obrigações laborais pelos concorrentes – ou, sequer, que assente na ideia de que os “privados” não devem ter lucro, porque se estão a associar à prossecução de uma tarefa de interesse público.
Concordo que, qualquer que seja o entendimento à luz do CCP actual, as novas Directivas parecem apontar no sentido da inadmissibilidade destas propostas. E bem.
Penso, contudo, que a perfeição deste sistema de contratação pública – sustentável, assente em propostas robustas e competitivas, mas sem cair em preços predatórios – não se basta com o aperfeiçoamento do regime do preço anormalmente baixo (que, aliás, deve ser melhorado, mesmo em face do que consta do Anteprojecto); exige, também e desde logo, que o próprio preço base fixado pela entidade adjudicante seja, ele próprio, realista e não abaixo de custo, como infelizmente ainda sucede.
Daí que, no meu post sobre a fixação do preço base, eu tenha manifestado a minha preocupação com a necessidade de as entidades adjudicantes terem presente a realidade do mercado quando configuram as peças do procedimento (incluindo a definição do preço base), pois, se o próprio preço máximo que a entidade adjudicante anuncia estar disposta a pagar é inferior ao custo mínimo legalmente exigido para a execução do contrato, aí não há proposta que sobreviva nem mecanismo de “preços anormalmente baixos” que nos valham. Acho, por isso, que, antes da obrigação dos concorrentes de não apresentarem propostas irrealistas, deveria consagrar-se a própria obrigação da entidade adjudicante não forçar os concorrentes a isso, ao fixarem preços inexequíveis, o que conduz à “canibalização” do mercado.
Quanto ao mais, de acordo.
Um abraço,
Marco
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Marco,
Totalmente de acordo.
Esse equilíbrio deve ser garantido e caberá ao legislador “encaminhar” as entidades adjudicantes para a definição de um preço base realista, evitando que os privados interessados na adjudicação sejam obrigados, não raras vezes, a apresentar propostas de duvidosa legalidade no que respeita ao suporte dos custos mínimos obrigatórios: ou apresentam proposta nesses termos ou, pura simplesmente, perdem a oportunidade de concorrer à adjudicação do contrato. A obrigação de evitar propostas inferiores ao custo mínimo legalmente exigido deve ser, em primeira linha, das entidades adjudicantes.
Pelo que o problema e a necessidade de o legislador resolvê-lo (ou, pelo menos, tentar mitigá-lo) fica resumido, na perfeição, com uma passagem da tua autoria no comentário acima: “se o próprio preço máximo que a entidade adjudicante anuncia estar disposta a pagar é inferior ao custo mínimo legalmente exigido para a execução do contrato, aí não há proposta que sobreviva nem mecanismo de “preços anormalmente baixos” que nos valham”.
Abraço,
Jorge
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jorge,
isto é fundamental. por muitas razões, mas para corrigir a jurisprudência errática do STA, que diz coisas tão bonitas como:
“o facto de uma proposta refletir um preço que implicaria um custo inferior aos custos que derivam da aplicação de uma série de leis do trabalho não implica que, face ao teor da proposta, a entidade adjudicatária não vá cumprir qualquer legislação vigente e nomeadamente a legislação de trabalho que vem invocada como custos fixos a considerar na proposta. Antes apenas significa que a mesma está disposta a ter certo prejuízo já que nada a impede de, a nível de estratégia de empresa, preferir obter um certo contrato, ainda que com algum prejuízo, até como política de marketing, de se dar a conhecer ao mercado” [STA de 3 de dezembro de 2015, Proc. n.º 0657/15]
” não é a execução de cada contrato que tem de garantir o pagamento da [retribuição mínima mensal garantida], mas os resultados económico-financeiros da contratante, no cômputo geral da sua actividade e, em última análise, todo o seu património. É claro que se em todos os contratos celebrados as remunerações obtidas fossem inferiores aos encargos assumidos, não só estes não poderiam ser assegurados, como a falência logo ficaria à vista. Mas essa não é a situação comprovada nos autos, bem podendo acontecer que razões estratégicas aconselhem a apresentação de propostas que envolvam a assunção de prejuízos pontuais” [STA de 14 de fevereiro de 2013, Proc. n.º 0912/12]
[e muitos outros…]
portanto: de acordo com STA, nada obsta a que um concorrente se apresente a concurso com um preço que não cubra os custos com a execução do próprio contrato, incluindo os custos associados ao pagamento do salário mínimo nacional. é que, à luz da liberdade de gestão empresarial, isso pode ter origem numa pura estratégia de maketing e de entrada no mercado.
dito de outro modo: o STA admite preços predatórios.
é facilmente compreensível que, na prática, a questão esteja em conseguir demonstrar que o preço é efetivamente abaixo do custo e, por isso, é predatório. mas o STA vai mais longe: parte do pressuposto da legitimidade deste tipo de práticas.
problema: o regime do preço anormalmente baixo, tal como entendido e construído no DUE da Contratação Pública, e em relação ao qual o intérprete nacional deve prestar atenção no momento de aplicar o Direito nacional, não consente este pressuposto. problema agravado: o STA não se apercebe disso.
solução: a que tu apontas – o CCP devia prever a solução e impedir estas situações. V., aliás, os Comentários de J. Amaral e Almeida/P. Fernández Sánchez, pp. 93-99, com propostas bastante concretas neste domínio.
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