1. Vários contributos, como os posts de Jorge Pação e Marco Caldeira e os comentários de José Duarte Coimbra, ou o texto de João Amaral e Almeida/Pedro Fernández Sánchez, Comentários, pp. 93 e ss., têm sublinhado aquela que é, sem dúvida, uma das questões mais discutidas em tempos recentes, entre nós e em outras paragens: a questão das propostas cujos preços se situam abaixo do que seria necessário para fazer face aos encargos mínimos exigidos para levar a cabo a execução do contrato. Para ilustrar a relevância do tópico, basta considerar os acórdãos do STA de 28-01-2016, proc. 1255/15; de 16-12-2015, proc. 1047/15; e de 03-12-2015, proc. 657/15; e do TCA Sul de 22-09-2016, proc. 12989/16, para citar alguns dos mais recentes.

A questão é muito mais complexa do que parece e pediria uma análise mais detida. Sob a aparente simplicidade desta ideia das “propostas abaixo do preço de custo” está uma quantidade muito significativa de delicados problemas de teoria económica e gestão de empresas, direito da concorrência, direito dos contratos públicos, direito do trabalho, direito da segurança social e outros. De todo o modo, queria aqui dar o meu contributo, ainda que incompleto, para a discussão.

2. Começaria por dizer que duvido que este seja um problema principalmente normativo, que se resolva através de uma ou outra solução legislativa. Considerando a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, não sei se não estaremos perante um problema essencialmente de facto, e de prova, e, além disso, extremamente dependente de factores específicos das peças de cada procedimento e das propostas nele apresentadas. Podemos pensar em soluções normativas para esta questão, mas receio que nenhuma delas irá facilitar o ponto que, no fim de contas, se bem se vir, é o que tem justificado as decisões dos nossos tribunais, que é a extrema dificuldade (em alguns casos, estou convencido, a impossibilidade) de captar um valor certo e líquido, que possa ser considerado como o “valor mínimo” que uma empresa tem de gastar para executar um contrato (ou uma parcela autónoma do contrato), e a dificuldade em exigir a uma empresa que comprove que contabilizou esses custos na sua proposta, até ao último parafuso.

Sem prejuízo disto, é evidente que temos de pensar na melhor solução normativa possível, que entrará em cena nos casos em que se consiga demonstrar que a adjudicação da proposta do concorrente não permitiria solver encargos obrigatórios (em muitos casos, essa demonstração é possível, naturalmente).

3. Assim, em busca dessa solução, o anteprojecto de revisão do Código intervém em matéria de preço anormalmente baixo (PAB). De facto, o direito europeu relaciona de modo muito claro estes dois temas (PAB e propostas abaixo de custo): veja-se o artigo 69º, nºs 2, alínea d), e 3, da directiva 2014/24, e os seus considerandos 40 e 103.

Em consonância, o anteprojecto apresenta uma importante alteração na redacção do artigo 71º, alteração que decorre do texto das directivas. Por ser subtil, essa alteração corre o risco de passar despercebida. Consiste ela em passar a falar em preço ou custo anormalmente baixo. Tal referência tem por sentido útil, a meu ver, uma distinção de situações. Com efeito, um preço anormalmente baixo é uma maneira eficaz, em muitos casos, de revelar o incumprimento de regras laborais ou sociais. Mas parece claro que uma proposta até pode ter um preço que não suscite qualquer suspeita (até pode ser o preço mais alto, e até pode ser próximo do preço base) e, ainda assim, violar regras laborais ou sociais. Não me refiro sequer aos casos (que também existem) em que o próprio preço base já está fixado no limite ou abaixo do preço de custo: refiro-me a propostas que em geral não são anómalas, mas em relação a certas partes incorrem na violação de normas relativas a encargos. No fundo, nestes casos, parece que o legislador sinaliza que o preço até pode não ser anormalmente baixo, mas ainda assim, pode o custo sê-lo.

Antecipo que alguns possam dizer: a referência ao custo no artigo 69º da directiva clássica teria apenas por sentido alinhar o texto dessa norma com as alterações em matéria de critério de adjudicação (que também falam agora em preço e em custo). Não me parece que seja o caso: penso que a referência daquele artigo ao custo deve ser lida como uma referência indirecta às propostas que são anómalas por violarem regras laborais e sociais.

4. Mas pode perguntar-se qual a razão pela qual o anteprojecto não especifica uma nova causa de exclusão de propostas, autónoma, baseada no incumprimento de regras laborais, sociais e outras regras imperativas.

A minha resposta seria: porque face à causa de exclusão já existente no artigo 70º, nº 2, alínea e), referente ao PAB (reforçada no seu campo de aplicação, como se viu, pela alteração ao artigo 71º, que passa a falar em preço e custo); e face à causa de exclusão, também já existente, da violação de regras laborais e sociais, prevista no artigo 70º, nº 2, alínea f), aquela hipotética nova causa de exclusão seria redundante.

Ou seja, o anteprojecto parte deste pressuposto: ou a violação de regras cria uma situação de suspeita sobre a proposta, reconduzível à figura do preço (ou custo) anormalmente baixo, e nesse caso, funciona como causa de exclusão o artigo 70º, nº 2, alínea e), do CCP (se não for apresentada justificação ou ela for improcedente); ou, ainda que o artigo 71º não consiga detectar todos os casos de violação de regras laborais ou sociais, sempre funcionará a causa de exclusão geral do artigo 70º, nº 2, alínea f), do CCP, que garante a exclusão, no caso de ficar demonstrada uma tal violação.

Seja qual for o caminho, o resultado é sempre o mesmo: de acordo com o anteprojecto, uma proposta em relação à qual se demonstre que não cumpre regras laborais ou sociais imperativas é excluída. E por isso, parece-me, a solução é conforme com as directivas; e pelo mesmo motivo, discordo da afirmação de que o anteprojecto omite ou ignora o tema das propostas abaixo de preço de custo. De facto, a única coisa que não se faz é autonomizar uma causa de exclusão específica para esse efeito. Mas isso acontece porque, neste ponto, o direito interno em vigor já consagra uma solução mais perfeita do que a do direito europeu. O anteprojecto apenas afina essa solução.

5. Nesta sede, deve ainda ser considerado um outro argumento que já foi apresentado a favor da autonomização de uma causa de exclusão com este conteúdo. Como tem sido sublinhado (por exemplo, João Amaral e Almeida/Pedro Fernández Sánchez, Comentários, p. 94), um ponto em que os nossos tribunais superiores nem sempre terão sido totalmente felizes consiste nas afirmações, que por vezes encontramos, segundo as quais as entidades adjudicantes não teriam sequer competência (competência legal; não falamos de competência técnica) para aferir do cumprimento, pelo concorrente, de regras laborais, sociais e outras das quais resulte o nível de encargos mínimo. E por isso – poderia dizer-se – uma causa de exclusão autónoma teria a virtualidade de afastar tais afirmações, tornando claro que as entidades adjudicantes podem controlar este aspecto.

Contudo, a meu ver, este é um argumento que, com o anteprojecto, deixa de valer, já que se refere, de forma clara, logo no artigo 1º-A, nº 2, que as entidades adjudicantes têm o dever de assumir essa vigilância (outra coisa é saber qual o nível de certeza que é razoável exigir a uma entidade adjudicante pública nesta matéria, e qual o nível de informação que pode ser exigido ao concorrente para justificar as suas opções).

E com essa afirmação do artigo 1º-A, nº 2, o legislador nacional – como, aliás, o legislador europeu (cf. artigo 18º, nº 2, da directiva 2014/24 e artigo 36º, nº 2, da directiva 2014/25) – rejeita qualquer veleidade de alguém continuar a afirmar que esta é uma matéria à qual as entidades adjudicantes são totalmente alheias.

MAR