1. Como o Marco Caldeira referiu em comentário a este post, há frequentes litígios (ele referiu mesmo a existência de uma “guerrilha”) em procedimentos de contratação pública relacionados com a admissão ou exclusão de candidaturas ou propostas com base em vícios formais.

Há, portanto, um problema real, no Direito em vigor, que os quase dez anos de vigência do CCP de 2008 não foram suficientes para solucionar.

O anteprojecto enfrenta esse problema, no artigo 72º/3 e 4 proposto. A proposta dessas disposições não é, por isso, fruto de qualquer capricho, nem inventa um problema: todos percebem o que motivou esta parte do anteprojecto.

2. A solução dada no artigo 72º/3 e 4 é clara, no sentido de ser perceptível o seu sentido normativo? Bem, até agora, embora tenha visto alguns (penso que não a maioria, mas esta é uma avaliação parcelar minha) criticarem a solução, ainda não vi ninguém com dúvidas sobre o seu sentido.

Parece que todos reconhecem que o preceito opta claramente em favor de um dos interesses em presença, ao sinalizar a irrelevância dos vícios formais se eles forem susceptíveis de sanação e se tal sanação não puser em causa a igualdade e a concorrência no procedimento (v. o inciso final do nº 3). A mensagem passou, penso eu.

O preceito, a ser aprovado, expressa assim uma opção política legítima, da qual, naturalmente, se poderá discordar. E independentemente dos seus méritos próprios, é uma opção apoiada em outros dados do sistema: o artigo 163º/5 do novo CPA é apenas um dos exemplos mais salientes do sentido geral de evolução do ordenamento jurídico, na qual a alteração proposta no anteprojecto se filia.

Quanto ao mais, a redacção do artigo 72º/3 e 4 poderá ser aperfeiçoada? Confesso que até agora, não vi propostas de redacção claramente melhores.

3. A redacção do artigo 72º/3 e 4, gera insegurança? Aqui a questão é mais interessante e obriga a considerar vários aspectos sobre o que se entende por insegurança, e quais as suas causas.

Uma norma que apela a conceitos abertos e a ponderações casuísticas, como é o caso, gera (considerada em abstracto) uma margem de incerteza superior à que é gerada por uma norma que não o faz. Isto porque é mais amplo e mais difícil de enunciar, à partida, o conjunto de situações que ela pode abranger. O que não quer dizer que a norma seja, por isso, desajustada.

Se a norma enunciasse taxativamente as situações a que visa aplicar-se, correr-se-ia o risco de situações que merecem a mesma solução ficarem excluídas. É o velho problema da cláusula geral vs enumeração taxativa: nada de novo aqui.

Do ponto de vista de legística e política legislativa, as enumerações taxativas são exequíveis e desejáveis em domínios onde o horizonte das situações possíveis a que a norma pretende aplicar-se é restrito e/ou se deixa reconduzir a categorias gerais de fácil densificação.

Ora, não parece haver grandes dúvidas de que, no que está em causa, é impossível elencar de modo suficiente os vícios formais que podem ser sanados. Por definição, o tipo e natureza dos vícios formais depende das peças de cada procedimento concreto e das exigências que elas fazem. Dado que as entidades adjudicantes podem criar os requisitos que entenderem adequados, dentro das balizas da concorrência e da proporcionalidade (cf., por todos, o artigo 132º/4, algo que encontra uma consagração muito concreta e relevante, por exemplo, no artigo 64º da Lei 96/2015), e atendendo à diversidade de conteúdos que podem constar dos contratos públicos e, portanto, das respectivas peças procedimentais, fica claro o quadro de extrema amplitude e diversidade de que estamos a falar.

Uma norma aberta do tipo da que figura no artigo 72º/3 do anteprojecto é, pois, em meu entender, a única adequada, neste contexto.

4. É óbvio que será preciso densificar o que significa a susceptibilidade de sanação referida no artigo 72º/3, ou os conceitos utilizados no nº 4.

No entanto, a esse propósito, noto várias coisas:

(i) este não é um dos casos em que o legislador enuncia o conceito indeterminado ou vago e não dá qualquer orientação para a sua interpretação. O nº 3 e o nº 4 do artigo 72º, na redacção do anteprojecto, exemplificam com casos em que o próprio legislador toma posição. Ou seja, as normas dão orientações palpáveis ao intérprete;

(ii) a solução proposta, por outro lado, não surge no vácuo: integra-se num debate doutrinal e jurisprudencial muito intenso (e, aliás, muito antigo), e também presente na generalidade dos outros ordenamentos próximos do nosso. O conhecimento dessas referências reduz em muito a incerteza sobre a matéria;

(iii) maior densificação ainda resultará da experiência de aplicação, já que a experiência tem o condão de reduzir de modo muito significativo a incerteza, sendo certo, por outro lado, que temos de dar tempo para isso poder acontecer;

(iv) por fim, e embora as directivas não se pronunciem sobre este tema, ele não é um tema neutro do ponto de vista do direito europeu (normalmente não vejo este ponto discutido, mas ele é essencial). Como de costume, as indicações do Tribunal de Justiça a este respeito são algo fluidas, porque são construídas a propósito de casos concretos. O que me parece resultar de seguro dessas indicações é que os vícios formais podem, ou mesmo, devem, ser objecto de correcção/sanação, o que é uma manifestação dos princípios da proporcionalidade e da concorrência, tendo como limite o princípio da igualdade de tratamento (sublinho em particular, na jurisprudência do TJ, os acórdãos Antwerpse Bouwerken, T-195/08; Manova, C-336/12; Cartiera dell’Adda, C-42/13, cujo nº 45 distingue claramente os erros meramente formais dos demais; e o recente Pippo Pizzo, C-27/15).

5. Ainda sobre esta matéria da pretensa insegurança, é preciso também dizer outra coisa, talvez incómoda. A “guerrilha” sobre esta questão, e sobre outras, nos últimos anos, tem muito a ver com a conjugação entre uma concorrência feroz entre empresas (decorrente do contexto económico) e a existência de estímulos sistémicos para a litigância patológica. Se em Portugal não fosse tão fácil, barato e compensador fazer acções de contencioso pré-contratual baseadas em minudências, talvez houvesse menos “guerrilha” e as questões jurídicas controvertidas estabilizassem mais rapidamente.

A este propósito, e só para dar um exemplo relevante para o tema deste post, talvez nos recordemos do número de acções judiciais relacionadas com a declaração do Anexo I ao CCP, quando o DL 149/2012 alterou a redacção dessa declaração e alguns concorrentes continuavam a utilizar a declaração antiga. Era um lapso que obviamente não tinha qualquer relevância material, porque a declaração alterada apenas actualizava a identificação de alguns diplomas legais e acrescentava, numa das alíneas [correspondente ao artigo 55º/j) do CCP], uma precisão que já resultava da discussão doutrinal (designadamente a partir da publicação do artigo de Margarida Olazabal Cabral sobre esse tema na RCP). Pois não só alguns defenderam convictamente que esse lapso irrelevante era causa de exclusão de propostas, como essa magna questão até chegou aos tribunais superiores. É uma boa manifestação de como litígios que nunca deveriam existir inundam os tribunais, com prejuízo geral para a justiça. Esta não é a única causa do atraso da justiça, mas é uma delas.

Quando há estímulos desadequados para pôr em causa a lei e as decisões que nela se baseiam, infelizmente haverá sempre litígios dessa natureza – seja a lei clara, obscura ou assim-assim.

MAR