1. Em post anterior, fizemos uma análise preliminar das medidas excepcionais de contratação pública aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020.

Foi depois publicada, em suplemento ao DR do dia 19 de Março, a Lei n.º 1-A/2020, aprovada na sequência da Proposta de Lei n.º 17/XIV, apresentada pelo Governo à Assembleia da República. A referida lei procede à “[r]atificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março” e à “[a]provação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2” (artigo 1.º). Entretanto, surgiu ainda o Decreto-Lei n.º 10-E/2020, de 24 de Março. Ambos os diplomas trazem algumas novidades relevantes em sede de contratação pública, a obrigar a mais “partes” deste tema geral, que iremos tratar em textos diferentes.

Não parece que se trate, ainda, das últimas medidas legislativas na matéria, designadamente por força de algumas dificuldades interpretativas que já estão a surgir.

2. Assim, e desde logo, há na Lei n.º 1-A/2020 (de que aqui falaremos) disposições importantes em sede de fiscalização prévia dos contratos pelo Tribunal de Contas.

2.1. Como se viu no post acima referido, o Decreto-Lei n.º 10-A/2020 limitava-se a prever, no seu artigo 2.º, n.º 8, uma norma especial em sede de efeitos do contrato antes do visto, não o dispensando. Já o artigo 6.º da Lei n.º 1-A/2020 vem estabelecer que, “[s]em prejuízo dos regimes de fiscalização concomitante e de fiscalização sucessiva previstos na Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, ficam isentos da fiscalização prévia do Tribunal de Contas os contratos abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, bem como outros contratos celebrados pelas entidades referidas no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, durante o período de vigência da presente lei.” (artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020). O n.º 2 acrescenta que os contratos “referidos no número anterior devem ser remetidos ao Tribunal de Contas, para conhecimento, até 30 dias após a respetiva celebração”.

A exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 17/XIV explicita as razões para uma tão significativa diferença de soluções em tão curto espaço de tempo: essencialmente, visou-se evitar dúvidas de constitucionalidade orgânica, relacionadas com a regulação da isenção de visto prévio (matéria regulada pela Lei de Organização e Processo no Tribunal de Contas – LOPTC), e deste modo, no Decreto-Lei n.º 10-A/2020 regulou-se apenas a questão dos efeitos do contrato antes do visto, deixando para a Lei n.º 1-A/2020 a regulação desta isenção.

Deste modo, o regime agora aprovado – que, note-se, produz efeitos à data de produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020: artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020 – prevê uma isenção de visto para todos os contratos que, de acordo com a Lei de Organização e Processo no Tribunal de Contas (LOPTC), estivessem sujeitos a visto e que sejam abrangidos pelo regime excepcional de contratação pública do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, ou seja, que digam respeito ao respectivo âmbito de aplicação definido pelo artigo 1.º desse Decreto-Lei.

2.2. Repare-se, porém, que, além do que acabamos de referir, e que é pacífico, a nosso ver, parece existir, na Lei n.º 1-A/2020, uma novidade significativa, que decorre do segmento do n.º 1 do artigo 6.º que se refere aos “outros contratos celebrados pelas entidades referidas no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 (…) durante o período de vigência da presente lei”.

A questão de saber quais os “outros contratos” aqui em questão não é isenta de dúvidas.

Numa primeira leitura possível, dir-se-ia que o âmbito da isenção, por estar inserido numa lei que consagra medidas de resposta à epidemia (a Lei n.º 1-A/2020), teria de ser apenas o dos contratos relacionados com esse âmbito. Esta tese tem a seu favor, inegavelmente, o argumento sistemático, mas explica menos bem a letra do preceito: a referência explícita a “outros contratos” parece exigir um âmbito suplementar, um acréscimo, um plus, face aos contratos abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020 (ou não se justificaria o segundo segmento do n.º 1).

Numa segunda interpretação, haveria efectivamente um acréscimo de contratos face aos regulados pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, mas ele seria apenas respeitante aos tipos contratuais (e/ou aos procedimentos): limitando-se as medidas excepcionais de contratação pública a contratos de bens, serviços e obras (e, pelo menos prima facie, celebrados por ajuste directo), e sabendo-se que há contratos de outros tipos sujeitos a visto, a Lei n.º 1-A/2020 teria vindo ampliar o elenco dos tipos contratuais e/ou procedimentos, abrangendo-os na agora criada isenção de visto. Pareceria algo estranha esta solução, pela exiguidade dos contratos do “acréscimo” que daqui resultaria (de que serviria, por exemplo, isentar de visto as concessões, nesta altura?), mas sobretudo porque não se compreenderia muito bem que, nessa parte, a isenção só valesse para as entidades do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020.

Uma terceira interpretação vai mais longe, e apontaria para a criação de uma verdadeira isenção subjectiva de visto prévio, em favor das entidades referidas no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, ou seja: “órgãos, organismos, serviços e demais entidades, incluindo o setor público empresarial, do Ministério da Saúde, da DGRSP, do INMLCF, I. P., do HFAR, do LMPQF e do IASFA, I. P.”, e independentemente, portanto, do objecto e finalidade desses contratos, sejam eles directamente relacionados com a resposta à epidemia, ou não, com a única limitação temporal da vigência da Lei n.º 1-A/2020.

Esta última interpretação tem, a nosso ver, maior apoio na letra da lei, e por outro lado, talvez consigamos vislumbrar aqui um possível racional para a solução, relacionado com a ideia de vasos comunicantes da resposta à epidemia, e com o específico elenco das entidades beneficiárias do regime (as do artigo 7.º do DL 10-A/2020). Com efeito, como temos visto e ouvido todos os dias, a eficácia na contenção e reacção à epidemia depende da manutenção da capacidade de resposta global do Serviço Nacional de Saúde e de outros serviços de resposta de primeira linha. Ora, durante o tempo de duração da epidemia, continuam a existir outras situações de emergência e outras necessidades de prestação de cuidados: o SNS continua a ter de atender todos os doentes, os serviços de medicina legal continuam a ter outras tarefas. Assegurar a prontidão global desses dispositivos de resposta também passa por contratos que, não estando directamente relacionados com a epidemia, contribuem para o “despacho” global das entidades; se um hospital, por exemplo, tiver o serviço de ortopedia assoberbado, com falta de pessoal e de equipamento, o hospital como um todo irá responder menos bem a um acréscimo de actividade decorrente da epidemia, ainda que esse acréscimo não afecte directamente o serviço de ortopedia. Toda a actividade dos hospitais e das demais entidades do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 está, neste momento, marcada pela necessidade de actuação urgente, e não apenas a actividade de resposta directa ao surto. O legislador terá considerado que um dos aspectos em que se justifica “acelerar” os procedimentos é o processo de fiscalização prévia, que por vezes adia a data de entrada em vigor dos contratos. Esta é, pelo menos, uma explicação plausível para aquela que nos parece a interpretação mais conforme aos dados normativos do artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020.

2.3. Estas opções do legislador em matéria de visto prévio exigem que se recorde o óbvio: não é o facto de não existir visto prévio que pode aligeirar minimamente o dever de cumprimento de todas as regras imperativas das quais dependa a legalidade da actuação das entidades adjudicantes. Do mesmo modo, mantêm-se em plena efectividade as normas que consagram infracções financeiras relacionadas com a actividade contratual pública. O não cumprimento dessas regras poderá ser suscitado pelo Tribunal de Contas em fiscalização concomitante ou sucessiva e, eventualmente, na actuação de responsabilidades financeiras. Perante este contexto, assume especial relevância o dever de comunicação destes contratos, em 30 dias, ao Tribunal de Contas.  

Anote-se ainda que o n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 1-A/2020 dispõe que “[n]ão são suspensos os prazos relativos a processos de fiscalização prévia pendentes ou que devam ser remetidos ao Tribunal de Contas durante o período de vigência da presente lei”, disposição que se compreende porque o legislador não pretendeu que os processos de visto pendentes, ou que venham a tramitar na vigência da lei, ficassem “capturados” pela norma do artigo 7.º, n.º 1, da mesma lei, que veio suspender, em geral, os prazos processuais e procedimentais perante diversos órgãos – entre eles, o Tribunal de Contas. O artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020 é, pois, uma norma especial face à norma do artigo 7.º, n.º 1, da mesma lei.

3. Ainda a partir da Lei n.º 1-A/2020, mencione-se dois temas já de natureza transversal (isto é, normas que não têm por objecto imediato a contratação pública), mas cujo impacto em sede de contratação pública deve ser referido ou, pelo menos, equacionado.

3.1. Assim, com relevância para a tramitação dos procedimentos de contratação pública na vigência da Lei n.º 1-A/2020, surgem os seus artigos 3.º e 5.º, n.º 1, relativos, respectivamente, às reuniões de órgãos do poder local e reuniões dos órgãos colegiais em geral.

Essas disposições clarificam (com especificidades entre os dois casos) a possibilidade de funcionamento dos órgãos colegiais por meios à distância, com salvaguarda da regularidade das suas deliberações. A relevância para o funcionamento dos júris e demais órgãos colegiais com competências em sede de procedimentos adjudicatórios é manifesta. Há que ter em atenção a necessidade de mencionar, na acta das reuniões, a sua realização por meios à distância (artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020).

3.2. Deve ainda ser equacionado o impacto do complexo artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, não apenas nos procedimentos de contratação pública, mas, em rigor, em todo o circuito do contrato: há aspectos que podem ser relevantes também para a execução (pense-se no n.º 3, que se refere à suspensão de prazos de prescrição e caducidade), e também para os meios contenciosos de reacção (veja-se os n.ºs 5, 8 e 9, recordando que os processos de contencioso pré-contratual são processos urgentes; há, aliás, fundadas dúvidas sobre a articulação destas normas). A análise das várias disposições desse artigo 7.º – que, receia-se, irá gerar significativas discussões, que se prolongarão por muito tempo – e de todas as possíveis refracções sobre a actividade contratual pública, exorbita, em muito, os propósitos do presente texto.

3.2.1. De todo o modo, uma questão premente merece desde já referência: a discussão sobre o potencial impacto do artigo 7.º, n.º 6, alínea c), nos procedimentos pré-contratuais em curso. Várias posições têm já sido apresentadas sobre o tema (veja-se, entre outras, a posição de Pedro Costa Gonçalves e Licínio Lopes Martins, a de João Amaral e Almeida e António Cadilha e a de Diogo Duarte de Campos, Joana Brandão e Carla Machado).

Há que dizer que a diversidade de opiniões é justificada pelo carácter algo lacónico do texto normativo, e pelo facto de o legislador ter aprovado (no Decreto-Lei n.º 10-A/2020) um regime excepcional de contratação pública, mas não se ter pronunciado expressamente, no artigo 7.º, sobre os procedimentos de contratação pública. Estes dados, a nosso ver, tornam já expectável uma clarificação legislativa.

Ainda assim, sabendo que, com muita probabilidade, o que se segue rapidamente ficará obsoleto, diremos que face aos dados actuais em presença, a tese segundo a qual o referido preceito pretendeu suspender todos os procedimentos administrativos (ou todos os prazos em todos os procedimentos administrativos), incluindo os procedimentos de contratação pública (ou todos os prazos nestes procedimentos) tem dificuldades em explicar a razão pela qual o legislador teria autonomizado, em alíneas diferentes deste mesmo n.º 6, diferentes tipos de procedimentos administrativos: se fosse essa a intenção, bastaria dizer que se suspendem todos; mas o legislador não fez isso. Além disso, como notam Pedro Gonçalves e Licínio Lopes Martins, o artigo 6.º, n.º 3, desta mesma Lei n.º 1-A/2020, conjugado com a aprovação recente de um regime excepcional de contratação pública, oferece um indicador, que não pode ser desconsiderado, no sentido de que o legislador não terá pretendido que os procedimentos pré-contratuais parem – pelo menos, os que são essenciais.

Ao mesmo tempo, há que referir que as limitações que os operadores económicos estão a sentir são reais e afectam a sua capacidade de responder aos procedimentos, e isso não é resolvido apenas pelo recurso aos meios electrónicos de contratação pública, pois estes apenas se referem à submissão da proposta, havendo uma série de actos preparatórios que exigem condições que actualmente podem não se verificar (parece-nos que aqui têm razão João Amaral e Almeida e António Cadilha). Foi a pensar nessas limitações sentidas pelos particulares que o legislador previu, em geral, o que se dispõe no artigo 7.º, n.º 6, alínea c), e em geral, compreende-se esse objectivo. Mesmo que os procedimentos de contratação pública tenham muitas especificidades, não se colocam fora do actual quadro de dificuldades gerais de funcionamento. Até pelo “depois” do procedimento de formação: de que serve, por exemplo, dizer que continua a correr um procedimento para fazer um contrato de prestação de serviços ou fornecimento de bens que, em regime de genérico isolamento social da população (e dos próprios trabalhadores públicos: não esquecer que os serviços de atendimento ao público, por exemplo, estão encerrados), não conseguirão ser prestados, ou não terão justificação? Isso seria induzir as entidades adjudicantes, por exemplo, a proferir decisões de não adjudicação ou de caducidade da adjudicação em massa, ou decisões de suspensão ou modificação dos contratos, expondo-as à complexidade e conflitualidade inerentes, numa altura em que as próprias entidades adjudicantes estão muito condicionadas.

Por tudo isto, parece-nos que o artigo 7.º, n.º 6, alínea c), também não deve ser interpretado de tal modo restritivamente que se concluísse que, em geral, os procedimentos pré-contratuais continuam intocados. O artigo 7.º, n.º 6, alínea c), quis provavelmente transmitir a ideia de que os prazos a favor dos particulares (e é pelo menos defensável que aqui se tenha querido incluir simplesmente os “prazos para actos a praticar pelos particulares”, de certo modo aplicando a distinção que faz, por exemplo, o artigo 86.º do CPA) estão suspensos, e, repete-se, não nos parece que os procedimentos pré-contratuais possam colocar-se à margem desta intenção.

Porém, esta conclusão tem, necessariamente, de ser pontuada por excepções.

A primeira diz respeito, naturalmente, ao regime de excepção em matéria de contratação pública aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020. Nem sequer compreendemos, com o devido respeito, que se possa sugerir o contrário. Dizer que os prazos dos procedimentos feitos ao abrigo desse regime de excepção ficam sujeitos a qualquer suspensão seria completamente contraditório com a consagração do próprio regime de excepção; o intérprete não pode presumir uma contradição interna tão evidente entre dois actos legislativos próximos e finalisticamente orientados para o mesmo objectivo; e não se pode esquecer o artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, que já referimos.

A segunda excepção, que poderá ser menos consensual, mas ainda assim, a nosso ver, se impõe, diz respeito à invocação pela entidade adjudicante (que terá de ser fundamentada) de que o procedimento e o contrato em curso têm de prosseguir para assegurar o funcionamento de um serviço cujo funcionamento se impõe, e aqui, a solução só pode ser uma: o procedimento (seja ele qual for, incluindo procedimentos concursais) tem de continuar. Algo semelhante a isto foi defendido por Diogo Duarte de Campos, Joana Brandão e Carla Machado (embora limitem a posição aos procedimentos restritos, o que não faríamos).

Este entendimento decorre de uma simples consideração dos bens envolvidos; a situação em causa, a ocorrer, revelará uma lacuna oculta do regime do artigo 7.º, n.º 6, alínea c), que tem de ser integrada. A suspensão ex vi artigo 7.º, n.º 6, alínea c), tutela primordialmente a pretensão dos particulares a concorrer pelo contrato, assim como o próprio interesse público na concorrência (pois um procedimento concursal no actual contexto não vai, provavelmente, produzir um resultado aceitável). Mas parece evidente que esses objectivos não prevalecem sobre a necessidade de um serviço público continuar a executar missões imprescindíveis e que continuem a ser prestadas mesmo no quadro actual. Nesta tarefa de identificação e fundamentação dos contratos essenciais, os sucessivos actos que têm sido proferidos (desde o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, ao Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março) podem, por exemplo, oferecer uma ajuda relevante, pois deles decorrem indicações sobre o que deve, em qualquer caso, continuar a funcionar (o que não significa que esgotem os casos possíveis).

Este entendimento tem de ser levado às últimas consequências: imagine-se que num concurso limitado, 10 candidatos foram qualificados, mas só dois estão em condições de apresentar proposta, e os outros oito não o conseguem fazer pelas limitações ao seu funcionamento. Num concurso para um contrato não essencial, compreende-se que oito devam fazer dois, e a entidade adjudicante, esperar; mas num concurso para um contrato essencial, não se compreende, e parece difícil negar que o concurso tem de avançar só com dois. A concorrência será, nesse caso, menos perfeita? É verdade, mas o ganho na prossecução do interesse público justifica plenamente – diremos: impõe – esse resultado. Repare-se, aliás, qual seria a alternativa: considerar esse concurso suspenso, e contratar por ajuste directo por razão de urgência, com algum dos que ainda estão disponíveis (com base na ideia, que parece gerar consenso, de que no regime excepcional não vigora a suspensão). Não faz sentido: do ponto de vista da concorrência, este segundo resultado é pior, e do ponto de vista do interesse público, é igual (ou mesmo pior, porque obriga a fazer dois procedimentos, ficando o concurso “suspenso” em situação de dúvida sobre o seu destino).

3.2.2. Não obstante os “paliativos interpretativos” que os juristas têm procurado (com atitudes mais ou menos construtivas), não se pode duvidar que estamos colocados perante uma situação de indefinição e legítima dúvida, que, a nosso ver, deveria ser resolvida através de uma regulação explícita. Ninguém duvida que não é fácil a tarefa de regular as matérias referidas no artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, mas por isso mesmo, compreendem-se eventuais ajustamentos nesta matéria, porventura, inseridos no contexto de outras clarificações que já têm sido solicitadas, a outros propósitos, a esse complexo preceito.

A clarificação legislativa que se impõe (e para a qual existem alguns modelos que poderão servir de inspiração: tem sido referida a “disposición adicional tercera” do Real Decreto 463/2020, aprovado em Espanha, na redacção dada pelo Real Decreto 465/2020, de 17 de Março), deverá, assim, ter aptidão para diferenciar entre as duas grandes categorias de situações que se vislumbra: (i) procedimentos respeitantes a contratos essenciais (sejam eles abrangidos pelo regime excepcional do DL 10-A/2020, ou não, como se disse: há inúmeros procedimentos, de todos os tipos, incluindo concursais, dizendo ou não directamente respeito à resposta ao surto, que não podem parar, mesmo na actual situação), e que o interesse público impõe que prossigam (o que sempre poderá, note-se, encontrar o limite fáctico do interesse e possibilidade de reacção dos respectivos interessados); e (ii) procedimentos não essenciais, que poderão ser objecto de outra solução que se entenda mais adequada, a qual, qualquer que seja, deve ter em devida conta todos os interesses em presença, incluindo as limitações que afectam, actualmente, não apenas os operadores económicos, mas as próprias entidades adjudicantes.

MAR