1. Em suplemento ao DR de 24 de Março, foi publicado o Decreto-Lei n.º 10-E/2020, da mesma data. O diploma vem, essencialmente, prever um regime excepcional de autorização de despesas pela Direcção-Geral da Saúde e pela Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (artigo 2.º).
Além disso, e com maior relevância para este texto, o diploma introduz uma alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, em concreto, ao seu artigo 1.º, n.º 3. De notar que se dispõe que a alteração produz efeitos à data de aprovação do diploma alterado (artigo 4.º, n.º 1, do DL 10-E/2020).
A nova redacção do n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 passa a ser a seguinte: “As medidas excecionais previstas no artigo 2.º são aplicáveis, com as necessárias adaptações, às entidades adjudicantes previstas no artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual.”
A alteração visa, claramente, responder às dúvidas que já vinham sendo colocadas (e que sinalizámos no post de 15 de Março que, entretanto, passou a oficiosa “parte 1” desta série) sobre o âmbito subjectivo do regime excepcional.
2. O saldo global da alteração é, a nosso ver, positivo: ao remeter para o artigo 2.º do CCP, a lei passa a abranger todas as entidades adjudicantes aí mencionadas, incluindo aquelas que, estando inequivocamente envolvidas na resposta ao surto, suscitavam dúvidas quanto à sua inserção em alguma das três categorias anteriormente utilizadas (“sector público administrativo”, “sector público empresarial” e “autarquias locais”), de que são exemplos as associações dominadas por entidades adjudicantes, ou as entidades intermunicipais. Tais entidades ficam, assim, abrangidas pelo âmbito subjectivo, desde que, naturalmente, as suas atribuições/competências/objecto social ou estatutário se relacione com as actividades e missões descritas no artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 (que permanece inalterado), e os contratos digam respeito a essas actividades e missões.
A lei refere que o regime é aplicável às entidades do artigo 2.º “com as necessárias adaptações”, solução não totalmente feliz do ponto de vista legístico, mas que significa, apenas, que há normas do regime excepcional que não se aplicam a algumas das entidades abrangidas (como já sinalizámos no post anterior).
3. Já nos parece menos compreensível que o legislador tenha entendido definir o âmbito subjectivo, não pela categoria geral das entidades adjudicantes, mas por uma remissão expressa apenas para o artigo 2.º do CCP. Isso tem o efeito prático de, prima facie, excluir do regime as entidades do artigo 7.º do CCP (que, como resulta desse preceito, não se reconduzem ao artigo 2.º), e de lançar dúvidas sobre o regime das entidades adjudicantes mencionadas no artigo 12.º do CCP, que relevam do artigo 2.º, n.º 2 do CCP, mas exercem actividade nos sectores especiais.
De facto, não vemos a razão que justifica que uma entidade adjudicante como uma empresa pública de sectores especiais, ou um concessionário actuando nos mesmos sectores, sejam excluídos do regime.
Claro que algumas das normas do artigo 2.º e dos demais preceitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 não têm significado para algumas entidades dos sectores especiais – mas outras têm, e distinguir umas das outras cairia simplesmente nas “necessárias adaptações”.
Por outro lado, também é óbvio que nem todas as entidades de sectores especiais estão ligadas à gestão do surto – mas esse argumento prova demais: também não o estão todas as entidades do artigo 2.º do CCP. E na verdade, parece que uma empresa pública ou um concessionário (privado) do sector dos transportes, ou das águas, ou da energia, podem perfeitamente ser chamados, com mais intensidade e propriedade, a colaborar com medidas extraordinárias no âmbito da gestão do surto (pense-se na importância das medidas relativas à mobilidade, ou na eventual necessidade de medidas adicionais de desinfecção das redes de abastecimento de água, ou de reforços pontuais das redes que sirvam, por exemplo, hospitais), do que, por exemplo, uma associação pública profissional (fora as das profissões de saúde), que está abrangida pelo artigo 2.º do CCP.
Assim, correndo o risco da repetição, insistiríamos na posição já defendida em post anterior: a melhor solução seria a de definir as entidades adjudicantes de forma global e apenas por referência à sua ligação com as medidas de resposta ao surto.
Independentemente dessa posição, de direito a constituir, pensa-se que, do ponto de vista do direito constituído, deve ser adoptada a interpretação mais ampliativa possível da capacidade de resposta das entidades adjudicantes, que ainda seja conforme à letra da lei.
Por isso, entendemos que as entidades do artigo 2.º, n.º 2, que actuam nos sectores especiais (artigo 12.º do CCP), também podem beneficiar do regime excepcional, mesmo para a sua actividade no âmbito desses sectores, já que ainda estamos perante entidades que se reconduzem ao artigo 2.º do CCP.
Já para as entidades do artigo 7.º do CCP, ainda que, em nosso entender, isso pudesse fazer sentido, é difícil encontrar apoio, na nova redacção da lei, para lhes estender a aplicação do regime excepcional por aplicação directa; ficaria, apenas, a possibilidade de, se e quando se verificar a incidência do estado de necessidade (cf. “parte 1”), se aplicar, por maioria de razão, alguns aspectos desse regime, como a produção de efeitos logo após a adjudicação (esta posição tem algumas semelhanças com algo que já se sugeriu aqui, ainda que aí se sublinhe de forma mais decisiva, parece-nos, todas as dificuldades de conciliação dessa possibilidade com a nova redacção, a que também aludimos).
4. Em suma: como seria de esperar, adensam-se algumas dúvidas, a enfrentar com soluções tanto quanto possível claras, que ponderem equilibradamente todos os interesses, mas sempre garantindo a suficiência da sua abrangência, para que a agilidade de acção necessária não seja tolhida por soluções que tornem demasiado rígidos os pressupostos da actuação das entidades adjudicantes neste tempo verdadeiramente excepcional.
MAR